A história de Marta, aquela que aprendeu a sua razão de ser e de viver: o Guarani

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Perder de 4 a 0 para o Paraná foi a gota d´água. A humilhação não tinha limites. Marta cansou. Desistiu do Guarani. Queria mudar o rumo da vida. Buscar um novo sentido. Antes, tudo girava em torno da camisa verde e branca. Tinha uma banca de frutas nas proximidades do Terminal Central. Acordava todos os dias as 05h e não parava antes das 18h. Quando a tabela programava algum confronto no Brinco de Ouro, tudo ficava em segundo plano. O Guarani era sua vida. Nem que fosse necessário pegar três ônibus na ida e volta para sair da região do Ouro Verde e sentar na arquibancada.

Tinha seus amigos. Comemorava, sofria, celebrava e irradiava otimismo quando o Guarani exibia alguma centelha de esperança. Foi assim na comemoração do acesso do ano passado na terceirona nacional

Só que tudo tem um fim. Está com 26 anos e cansou. Não mudaria de time. Procuraria novos ares e repartia a angústia com a mãe Janete. Esta tinha 50 anos. Era viúva e sabia da paixão da filha. DNA do pai, Jaime,  recentemente falecido em infarto fulminante. Foi durante o expediente de trabalho. Nem deu tempo de socorrer.

Janete sabia da herança deixada pelo marido: o amor pelo Guarani. Se Marta só conhecia dissabores, a mãe também empregada doméstica recordava dos bons tempos: o titulo brasileiro de 1978, a Taça de Prata de 1981, as participações na Libertadores…Tempos de craques, estádios lotados, partidas memoráveis.

Janete flutuou entre a indignação e o inconformismo quando a filha, recém-chegada do estádio enumerou suas lamúrias.

– Não dá mais mãe, não dá mais! Chega! É muita humilhação. Eu vou esquecer o Guarani, pensar em outra coisa – disparou Marta, com os braços levantados, camisa do bugrão colado no corpo.

– Filha, calma- apelou a matriarca agora solitária no papel de adulta.

– Calma o que! Todo ano é esse sofrimento para evitar o rebaixamento. Noticias de dirigentes incompetentes, jogadores que não estão nem aí com o nosso calvário e um resultado negativo atrás do outro. Para que tudo isso? Para ser zuada por amigos que torcem por outros times? Bobo foi nosso pai, eu e você que ficamos atrás disso. Eu vou é ser feliz…

Janete não tinha o que argumentar. Paixão e amor pelo clube não serviam como álibi, apesar de ser um combustível poderoso. Naquele momento, não existia chance de diálogo. Restava a Janete  dormir e deixar Marta com suas frustrações.

– Filha, vai dormir. Amanhã é outro dia. Não só para o Guarani, mas para todos nós.

Agitada, nervosa e inconformada, Marta tomou um banho. Procurou relaxar porque no dia seguinte precisava trabalhar. Tinha menos de quatro horas para dormir e batalhar pelo sustento.

A insônia queria invadir sua alma. Vira e remexia na cama simples, de madeira, comprada  quando seus pais casaram-se no civil. Luzes apagadas, eis que alguém toca de leve em sua perna. Acredita ser sua mãe. Querer consolar e conversar com a filha. Ao acender o abajur quase tomou um susto ao ver em sua frente a esfinge do rosto do pai. Não era possível. O homem que ela enterrara há quatro meses estava perto dela. Com pânico e com as mãos agarradas ao lençol, ela só teve forçar para balbuciar escassas palavras:

– Paaaaiii! ?- disse com voz abafada.

– Oi filha. Não se assuste. Sou eu mesmo!- disse o senhor de cabelos brancos e sorriso largo.

– Não pode ser. O senhor morreu. Eu vi. Eu te enterrei. Não é possível

– Filha, aquilo era o corpo. Estou vivo no seu coração e no de sua mãe. Eu cuido de vocês. Seja o lugar em que estiver. Só que dessa vez em vim lhe fazer um apelo.

Desconfiada, Marta não queria entrar de cabeça na conversa. Venceu a resistência e aquiesceu:

-Diga, o que você quer? Estranho isso, você nunca teve cerimônia em dizer o que pensa- ironizou Marta, já novamente deitada, mas com abajur aceso.

– É sobre o nosso bugrão…

– Seu né, pai. Meu não é meu senhor Jaime- cortou a filha agora com o semblante alterado e contrito.

– Não, é seu também. Eu vi seu acesso de fúria. Você não tem direito de abandonar o Guarani. Não pode virar as costas…

– Pai, encerra esse papo enrolado. Eu não torço, pronto e acabou.

– Não é assim.

– Como não é?

– Parece que você foi acometida de uma crise de memória. Lembra como conheci sua mãe? Foi na saída da final contra o São Paulo, do Campeonato Brasileiro de 1986, realizado em fevereiro de 1987. Ela estava sentada na calçada e chorava. Muito. Eu me aproximei, puxei papo e começamos a conversar. Ficamos até o amanhecer em frente ao estádio. Depois, andamos a pé até o antigo Terminal 2 na Moraes Sales…E desde então não nos desgrudamos mais…

Marta arregalou os olhos. Ficou sentada na cama e com a luz direcionada aquela pessoa que era referência de sua vida, a atenção foi redobrada.

– Quando você era criança, te levei com três anos para ver aquele time com Amoroso e Luisão. Depois você virou adolescente e me acompanhava no calvário das Séries C e B em 2008, 2009. Lembra como a gente abraçou e chorou no acesso do ano passado? E os amigos formados? As caravanas, o Morumbi cheio de bugrinos na final do Campeonato Paulista de 2012. Não era apenas programa de torcedor. Era inesquecível. Como agora você quer jogar tudo fora? O que justifica ignorar o que vivemos e sonhamos todos esses anos com essa camisa? O meu corpo foi enterrado com a camisa retrô de 1978. Tem noção? E vamos jogar tudo para o alto por causa de uma única derrota. Filha, acorda!

Marta começaria outra discussão interminável com o pai. Como nos velhos tempos. A porta bate. Era Janete por achar que a filha estava com um pesadelo.

– O que é isso Marta! ? Por que toda essa gritaria?

– Mãe, era o pai, eu juro. Eu conversei com ele. Ele me disse para jamais abandonar o Guarani- disse Marta, com as duas mãos nos braços da mãe e em claro comportamento de aflição

– Filha, você está exausta. Precisa descansar. Amanhã é outro dia. Encare o sonho com o seu pai como algo bom..

– Mãe, ele esteve aqui. Conversou comigo. Acredite em mim…

– Tá bom filha, está bem..Vai dormir

Janete bateu a porta do quarta. Horas depois, o sol apareceu no horizonte. Hora do trabalho. De seguir a vida.

Os dias passaram e Marta queria demonstrar normalidade. Dizia que esqueceu os jogos, o Guarani, tudo que envolvia futebol. Após a derrota para o Náutico e o empate contra o ABC, entretanto, o sentimento bugrino voltou. Quanto mais recebia gozações e piadas mais florescia a vontade de sentar na arquibancada do Brinco de Ouro. De ajudar, auxiliar, estender a mão ao clube do coração.

Criou coragem e vestiu a camisa novamente contra o Juventude. Repetiu o ritual de passar a catraca e dirigir-se a arquibancada do localizada logo acima do portão principal.

Retorno com postura diferente. Não ficou com os amigos de longa data. Queria ficar sozinha, isolada, reflexiva. Ao mexer na carteira, viu uma foto da época de criança. Ela e o pai, no Brinco de Ouro. Os dois uniformizados, ela com uma bandeira na mão. Sorriam. Estavam felizes radiantes. Tinha esquecido da foto. Não lembra o dia. Nem o jogo. Pouco importava. Acariciou aquele registro único, eterno. Os olhos marejaram. De tanto olhar e fazer uma viagem involuntária no tempo, sequer percebeu a entrada dos times, o hino nacional e o apito inicial.

Agitação, gritaria ao redor lhe despertaram para o jogo. Seguiu no ritmo do time. Vibrava e pulava como nos velhos tempos. O gol de Caíque lhe gerou uma explosão de sentimentos que há muito tempo não sentia. Tomou ânimo e foi mais próximo dos amigos, dos irmãos de arquibancada. Marta estava em casa. Aquela era sua casa.

O segundo tempo veio, o Guarani era pressionado. Marta só agarrava-se na foto do pai. Rezava. Pedi para o tempo transcorrer como foguete. Não podia sentir o fel da derrota. Aos 43min, o alivio: novo gol de Caíque. Desta vez não só alegria. Abraços, choro ao lado dos amigos de longa data. Fim de jogo, missão cumprida. Reconciliação com sua razão de viver.

Marta sentou na arquibancada. As pessoas saiam do estádio e ela ali, inerte, sem reação. Ao ser advertida, tranquilizou os amigos:

– Estou indo. Só me deixa mais um pouco aqui- pediu.

Após 15 minutos, o Brinco de Ouro estava vazio. Luzes apagadas aos poucos. Marta, a adulta de 2017 pegou a foto tirada na infância. Olhou e deixou a alma dialogar com o outro amor de sua vida, agora distante:

– É, pai. Você tem razão. Hoje e Sempre Guarani.

Marta aprendeu a lição. Não há como arrancar uma segunda pele. Faz parte da alma.

(crônica de Ficção de autoria de Elias Aredes Junior)

 

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