O céu vivia dias agitados. Os preparativos eram acelerados. Todos queriam que nada saísse fora do prumo. Primeiro, a lembrança pela crucificação. Depois a celebração da ressurreição. Ninguém nunca ligou para datas, mas se uma parte da humanidade quis assim, que o fluxo seja seguido. O protagonista acompanha tudo e não quer que nada saia do roteiro. Jesus, o Cristo, conversa diariamente com o pai. Quer uma páscoa de harmonia e paz.
Tudo corria bem até que um senhor chegou e procurou o anjo guardião. Queria falar com Deus. Seu nome? Moisés. O anjo imaginou que desejava abrir o mar vermelho ou fazer uma nova tábua com os 10 mandamentos. Nada disso. Queria pedir a Deus que por algumas horas fosse permitido o que se passava na terra. Queria assistir a um jogo de futebol.
O anjo estranhou. Nunca tinha visto um pedido assim. Não podia autorizar. Só com ordem suprema.
Moisés era destemido. Corajoso. Quando era vivo liderou uma multidão para levantar um estádio do zero. Lançou a proposta ao anjo:
– Me deixe entrar e conversar com ele. Ele vai entender a situação.
O anjo ficou confuso. Nenhum habitante do céu nunca ousou falar com Deus. Ficou tão atarantado que entrou na sala reservada a Ele e diante do trono se ajoelhou perante a Deus e explicou o quadro. Deus Deus franziu a testa, ficou em estado reflexivo e deu o veridito:
– Deixe ele entrar. Vamos ver o que ele tem a dizer.
Moisés entrou. Conversa a portas fechadas. Do lado externo, os anjos estavam estupefatos. Não se ouvia um pio. Nada. Um silêncio intimidador. Após horas e horas, Moisés parecia sair da sala 10 ou 15 anos mais jovem. Sorriso largo, expansivo para encher o peito e dizer:
-Deus é bom. Permissão concedida. Podem encontrar um canto porque amanhã vamos assistir a um jogo lá da terra. Ele dará um jeito.
Perplexos e impactados pela informação, os anjos queriam saber que partida era aquela que Deus autorizou sua transmissão. Eles tinham informação de existia uma competição chamada Copa do Mundo que movimentava todo o planeta. Só que tinha acabado há três meses. Então, já estava fora de cogitação. O que seria? O que atraía tamanha atenção? O jeito foi esperar o dia seguinte. Ou as próximas horas.
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Moisés apareceu com rosto esfuziante no espaço reservado. Trazia cadeiras. Todas banhadas a ouro. Acolchoadas e com revestimento de seda. Produto de altissimo padrão. Perfilou cada uma lado a lado. Quando terminou a arrumação do espaço, a impaciência surgiu na alma. Andava para lá e para cá pelas ruas de ouro. Tronco curvado, mãos para trás, Moisés só balbuciava no ar, sem destino:
– Será que ninguém vem?
Aos poucos, a duvida se desfez. Velhos amigos e conhecidos apareceram. Suas frases de boas vindas era um prenúncio de que algo bom surgiria no horizonte.
-Donana, que bom revê-la. Há quanto tempo- extasiou-se ao ver a senhora negra, de passos firmes e voz mansa.
Minutos, depois outra agradável surpresa:
– Ah, Conceição, você não poderia faltar!
E veio muito mais gente: o Otacílio, o Sérgio, o Bibe, Décio, Enoch, Oady, Zé do Pito, Carlão Perna de Pau…O céu virou uma arquibancada.
As informações eram escassas. Só sabiam que era uma final de campeonato. De repente, as nuvens se dissiparam e um telão virtual grande surgiu.
As imagens eram nitídas. Foi como se um cinema fosse instalado. A camisa branca, a faixa transversal no peito dos jogadores e a multidão presente naquele lugar familiar provocou uma mix de sensações e de emoções. Lágrimas, risos e uma alegria contagiante tomou a alma de cada um dos presentes naquela final diretamente da Terra. Rever um espaço de felicidade e êxtase era algo forte para quem já tinha se acostumado com a nova vida na glória.
O turbilhão de emoções não permitia vacilos. Era preciso se readaptar a assistir ao futebol e aos seus desdobramentos.
Quando o jogo começou, tudo parecia voltar a retina: os ídolos, as alegrias, as dores e as amizades deixadas na terra. Não era um jogo. Era a reprise de um tempo feliz. Em tempo real.
Os minutos passavam e o lado sombrio da decepção reaparecia. Cada lance ou jogada mal sucedida e as frases surgiam na arquibancada celestial:
– Eu não quero reviver 1977!- dizia um.
– Só falta terminar como das outras vezes. Já esqueci o que era sofrimento!- afirmava outro.
Reclamações,muxoxos e muitos queriam ir embora ao final do primeiro tempo. Desistir. Abandonar de vez. Nada de segunda chance.
O rumo da prosa muda quando Décio, advogado recentemente chegado e um otimista incondicional levantou-se e bradou:
– Desistir nunca. Vai dar! Eu sinto que hoje é a nossa vez. Não é hora de recuar. Vamos dar as mãos e mandar energias para que nosso sonho seja realizado- disse o advogado de sorriso largo e que já tinha o carinho e a amizade de todos.
A sua “revolta santa” incentivou outros a entrarem na corrente. Encostado em um canto, quase sem falar, Salvador, que na terra foi um radialista capaz de galvanizar multidões tomou coragem e disse:
– Isso não pode ficar assim. Vou narrar. Deus vai me iluminar e de um jeito ou de outro eu vou descrever as jogadas e com os nomes reais.
Milagres são esporádicos. Produtos da força divina. Geralmente frutos do poder de Deus. De repente uma magia acontecia: Salvador, o narrador adormecido começou a disparar palavras e se entusiasmar como se fosse uma final de Copa do Mundo (e era). Milagrosamente, começou a descrever cada um dos atletas no gramado. Uma força maior lhe soprava cada nome de quem estava no gramado.
Os nomes ditos por ele muitos sequer ouviram falar ali no céu: Matheus Jesus, Élvis, Junior Tavares, Artur. Alguns chegaram a perguntar pelos ídolos do passado. Pouco importa. Era com esses jogadores que o tão sonhado título chegaria. Salvador descreve, narrou, colocou emoção…e nada!
O apito final da árbitra e o empate sem gols provocou um silêncio indescrítivel no céu. Pânico de viver uma nova decepção. Penaltis no caminho.
Otacílio relembrou seus tempos de treinador. Gesticulava, anotava na prancheta, gritava orientações com o objetivo de que algum jogador fosse ouvir. Em vão. Só dava para assistir. Sem interferência.
Salvador não entregava os pontos. Narrou às lágrimas a defesa de Caíque França. Entrou em desespero com o desperdício da penaltidade de Matheus Jesus. Ficou de joelhos ao presenciar o erro de Junior Tavares.
A esperança renasceu com as outras duas defesas de Caíque França e virou dia ficar colorido com o gol de Elvis. O camisa 10. Título garantido. Ponte Preta campeã. Ele olhou para cima e viu algo indescrivel: as nuvens formavam faixas em preto e branco. Não era um arco íris. Era o aplauso dos céus.
Na terra, torcedores ensandecidos. No céu, Conceição e Donana choravam abraçadas. Décio estava no chão, deitado, de bruços, em choro de quem acreditava de quem nunca iria ver aquela cena. Festa, gritos, pulos, jubilo. O sofrimento tinha acabado. Era permitido sorrir. O cadeado dos sonhos foi quebrado.
Em meio aquela celebrado, Otacílio recobrou a consciência, aproximou-se de Moisés e perguntou:
– Ei, o que você disse para Deus ? Por que ele permitiu que a gente assistisse ao jogo?
Com uma cara aliviada, lívida e consciente do feito, Moisés respondeu de maneira serena:
– Não precisei dizer nada. Deus é pontepretano!
(Elias Aredes Junior com foto de Marcos Ribolli-Especial para a Pontepress)