Méritos sobram na classificação do Guarani às semifinais da Série A-2 do Campeonato Paulista. São 28 gols em 13 jogos. Ataque envolvente e letal. Favorito para obter o acesso. Trabalho impecável do técnico Umberto Louzer e de seu elenco. Não compreendo o futebol apenas nas quatro linhas. Isso é raso, superficial, tosco e primitivo. Sem nexo. O futebol é, antes de tudo, o reflexo de uma comunidade, de um nicho da população. É um retrato de um tempo.
Quando foi campeão brasileiro em 1978, o time comandado por Carlos Alberto Silva era o contraponto ao futebol pragmático e defensivo da Seleção Brasileira de Cláudio Coutinho. Um staff coalhado de militares. E Campinas, reconhecida como um polo de resistência ao Regime Militar, era a responsável por fornecer tempos de luzes.
O tempo avança. Quarto lugar na Libertadores de 1979, terceiro lugar no Campeonato Brasileiro de 1982, vice-campeão nacional em 1986, segundo lugar no Paulistão de 1988… Tempos para germinar um estilo e uma maneira de torcer para o Guarani.
Neste período, existia vibração pelas vitórias, um elixir viciante por ficar no topo, mas as arquibancadas não eram apenas alegria. Eram um seminário constante de ideias, reflexão, busca de caminhos. Discutia-se futebol com conteúdo. Em todas as classes e faixas etárias.
Lembro que na minha infância e adolescência no Jardim Amazonas, a rua ficava deserta a partir das 18h. Ou porque uma parte estava na escola (o horário era das 15h às 19h) ou porque a turma da manhã ficava de ouvido ligado para ouvir os programas esportivos. Eram basicamente dois: o da Rádio Educadora e a Central Esportiva, com José Arnaldo, e Brasil de Oliveira ou Carlos Gonçalves nos comentários.
Após o jantar, a esquina da rua Itagiba com Clara Camarão era invadida por um debate entre bugrinos e pontepretanos que durava horas. No caso do Guarani, as decisões de Beto Zini eram esmiuçadas, as escalações discutidas a exaustão e mesmo em fase boa, ninguém deixava de preocupar-se com alguns problemas congênitos. Adalto, Victor, Arantes, Alexandre Brites, André Brites, Alex.
A bancada era ativida e presente nos estádios. Exemplo prático: em 1986 o desespero da garotada era a limitação técnica de Marco Antônio, titular da lateral direita. Debater, discutir e cobrar os dirigentes bugrinos era rotina, seja na vitória ou na derrota.
Estamos no Século 21. Vivemos um paradoxo. O Guarani, vítens de rebaixamentos e humilhações no gramado, graças à incompetência dos seus dirigentes, perdeu suas raízes. O torcedor tem medo de pensar, refletir, criticar. Está envolvido em um “mundo perfeito”, em que tudo de errado deve ser colocado para debaixo do tapete. Em qualquer conjuntura. Na vitória para não quebrar o clima positivo e quando perde a justificativa é que a dor de uma nova queda é dilacerante demais para suportar encarar a realidades.
Nestes últimos três dias este colunista escutou de torcedores bugrinos frases intrigantes. Uma disse: “Eu vou na Rua Javari ver o Guarani e não vou no Brinco de Ouro. Ali não é mais o meu lugar”. Ou tem aquele que disparou: “Eu liguei o f… e só curto as vitórias. Depois eu vejo o que fazer”. Pois é. Eu ouvi a mesma conversa nos acessos na Série A-2 de 2007 e 2011, na Série C de 2008 e de 2016 e na Série B de 2009. Responda para si mesmo: o que mudou depois destes triunfos? Qual foi a melhoria de estrutura apurada pelo Guarani? Nenhuma. Pior: o que se viu foi o surgimento de três tipos de torcedores bugrinos que jamais estariam em pauta nas décadas de 1980 e 1990.
O primeiro é o desiludido. Não acredita no noticiário da imprensa, não convive com torcedores e cansou dos desmandos e do esvaziamento do clube. Temos o segundo modelo que é o torcedor alienado. Seja na vitória ou na derrota, ele não aceita cobranças ou melhorias. Quer viver um conto de fadas eterno e deseja que a imprensa lhe despeje este doping por intermédio do noticiário. Para completar, o terceiro modelo. São os corajosos das redes sociais, incapazes de formular um argumento sequer, de construírem uma ideia original, mas que no fundo, mesmo que indiretamente, agradam aos dirigentes porque têm uma obsessão: calar as vozes dissonantes.
Acredito no acesso. Creio na presença do Guarani na Série A-1 de 2019. Mas ao custo da destruição da personalidade de uma agremiação que já foi vanguarda, que ditou tendências e hoje parece apenas uma reprodução das arenas de Roma, cuja meta era oferecer pão e circo. Sim, o espetáculo está maravilhoso. Digno de aplausos. Mas a hora em que todos correrem atrás do alimento verão que ele está embolorado e impróprio para consumo. Poderá ser tarde demais.
(análise feita por Elias Aredes Junior/foto: Letícia Martins – Guarani Press)