Sou campineiro. Nato. 45 anos. Vivi e senti amarguras e decepções nas arquibancadas do Brinco de Ouro e do Moisés Lucarelli. Não são clubes de futebol. Fazem parte do meu DNA. Da formação do meu caráter, da minha índole. Os Aredes tiveram o futebol como alicerce para a construção do sentimento de pertencimento a uma cidade que, na década de 1960, respirava o dérbi e o futebol. Os Pômpeo, família da minha mãe, também. Ponte Preta e Guarani eram o assunto predileto. Assunto de estado. Prioridade máxima.
Não era para menos. Nos Aredes, Oady, Joel, Enoch, Elias, Nabal e Francisco. Seis irmãos. Seis histórias diferentes. Todos saíram de uma cidadezinha do interior, Guarantã, rumo ao desconhecido. Desafio de construir uma vida em um lugar inóspito, sem eira e nem beira.
Como fazer? De que maneira? Como fazer? A Ponte Preta foi a porta de entrada. Por semanas, dias, meses e anos esses seis irmãos, Cristãos e trabalhadores, utilizavam o futebol e a Ponte Preta como porta de entrada. Usaram as caravanas, as excursões pelo interior e as tardes no Majestoso para criar vínculos, sentir o gosto da vitória e do amor em comunidade.
Meu pai, um jovem de 30 anos, presenciou ao vivo e em cores o gol de Samarone que tirou a chance da Ponte Preta subir para a primeira divisão. Viu ali a dor, o choro, o sofrimento de um povo, de gente ligada pelo sofrimento, tenacidade, vontade de viver. Era lindo, emocionante, belo.
Para os Aredes, o futebol e a Ponte Preta não era somente um clube de futebol. Era uma extensão da família. Na dor ou na alegria. Na defesa e no ataque. Lances e glórias memoráveis impregnados na mente e na alma.
Quando você está integrado a um grupo familiar, um tipo de amor é desenvolvido. Chama-se Ágape. Não há paixão, emoção e devoção. Existe respeito, carinho e compreensão. Ágape. Amor familiar.
O garoto de sete anos, enlouquecido pelo futebol desde a final do Campeonato Brasileiro de 1980, já tinha o amor ágape. Já se sentia integrado. Só que ele queria apaixonar-se. Vivenciar o que é perder a consciência por um clube, entender a loucura de perder dias, noites e até o emprego para ir atrás de uma camisa que para outros não significa nada.
O garoto negro e gordinho assistia Zico e ficava maravilhado, mas não era Flamenguista; admirava a coragem de Reinaldo, mas o Atlético Mineiro era algo distante, fora de foco; Sócrates lhe despertava admiração pela classe e inteligência, mas o Corinthians não comovia; Serginho Chulapa constituía-se no personagem que fazia seu pai chegar do serviço e ouvir o “Globo Esportivo” com Osmar Santos. Mas a faísca do Amor incondicional, da entrega total não acontecia.
Aconteceu de maneira inusitada. Com um excluído. Meu tio. Samuel Pômpeo. Irmão de minha mãe. Batalhava contra diversas doenças. Não tinha emprego. Vivia de bicos e de favores entre a própria família. Lutava para fugir da fome.
Em dado momento, em 1982, recebeu da sua mana a missão de pintar a casa toda no Jardim Amazonas. Ficaria por ali por 10 dias. Tomaria café, almoço e janta. Sobrevivência esticada. A ligação com o sobrinho era total. Acompanhava com ele o noticiário da televisão. E soprova no ouvido do moleque apenas um nome: Jorge Mendonça.
A cada gol exibido pela televisão, a cada replay, apenas um nome saía da sua boca: Jorge Mendonça. O camisa 10, de esfinge negra, camisa verde colada ao corpo, protagonista do Brinco de Ouro e autor de proezas ao nível de gênios da bola, acendeu a química da paixão futebolística. Acompanhava tudo. Assistia cada segundo daquele craque sob o comando do velhinho simpático chamado Zé Duarte.
Aos poucos, a paixão toma o lugar da loucura. Na loucura, cometem-se desatinos. Até de renegar o amor ágape. Coisas de menino. Sem sentido. Que a mente coloca no lugar com o passar dos anos.
Porque a alma amadurece, o coração esfria e tudo fica cristalino como água. Os livros, o estudo, o entendimento da cidade em que você vive, estuda, trabalha e faz a sua vida não pode ficar pela metade. A Ponte Preta não pode ficar sem o Guarani. O Alviverde não pode ficar sem a Macaca. Primos da bola e que vivem um ressentimento torto, em que um é combustível do outro.
O jornalismo, no final das contas, é apenas o palco do coração e do cérebro daquele garoto de 9 anos e predestinado a retratar fatos e análises. Porque ver a Ponte Preta em um caminho sem volta, entregue a uma dinastia de 21 anos no poder e sem o povo, a massa, o excluído e o abatido sem voz é como presenciar a casa da sua mãe ser destruída, dilacerada e você encontrar-se impotente, sem ação. Vão despejá-la e tudo parece irreversível. E você grita. Clama. O amor ágape impulsa por justiça não por você, mas para que a sua família tenha felicidade plena. E colha dignidade. Respeito.
Ver o Guarani envolvido por anos e anos de desmandos e rebaixamentos e presenciar uma torcida anestesiada, alienada e que clama por nacos de felicidade é como deparar-se com o grande amor de sua vida entregue nas mãos de uma pessoa sem escrúpulos, pronto a lhe usurpar. Pior: o objeto de admiração do seu coração (a torcida) não quer acordar. Não quer ser chamada a atenção. Quer viver em um estado de embriaguez. Mesmo que dure segundos. Enquanto isso, o cafetão saqueia sua conta bancária, destrói seu futuro, arrebenta com sua dignidade. Faz o ruim do passado virar bom no presente. Transforma o torcedor em consumidor de esmola. De se contentar com pouco. Quando no passado até entrou em campos da América do Sul. É humilhante.
Ver o torcedor pontepretano rezar por permanência na Série B e o torcedor bugrino celebrar permanência em idêntica competição e comemorar com entusiasmo um possível acesso na Série A-2 é, no fundo, a aniquilação dos sonhos do menino. Porque ele sabe que sua família pode ir mais longe. E que a sua paixão pode voltar a ficar com o rosto sem retoques e maquiagens. O menino não desiste. Vai insistir até não possuir mais forças. Porque, no fundo, ele utiliza sua profissão quando adulto para buscar um único objetivo: ajudar a reconstruir no futebol uma cidade feliz .
(artigo de autoria de Elias Aredes Junior)