Fernandinho falhou. Jogou mal. É do roteiro. Ninguém é perfeito. O esporte revela surpresas. Algumas desagradáveis. Os ataques racistas desferidos contra o atleta na sua conta no Instagram são deploráveis. Crime. Os autores devem ser identificados e punidos. Cabe uma reflexão necessária e que pode ser resumida em uma frase: a instituição da culpa do negro no futebol brasileiro.
É uma história com idas e vindas. Inicia quando o futebol, um esporte elitista e feito para os brancos, praticado em escolas privadas, virou no século 20 um abrigo para os negros pobres na região periférica do Brasil. O período é retrato no livro “O Negro no futebol brasileiro de autoria do jornalista Mário Filho e que diz o seguinte: “(…) aos clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um time brancos,, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Contra esse time os brancos não podiam fazer nada. Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante,, o branco tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto para ver quem jogava melhor (…)”.
Todo esse cenário acontecia porque dentro do futebol carioca, os gigantes Flamengo, Botafogo, Fluminense e América eram considerados elitistas e foram surpreendidos com os títulos do Vasco em 1923, do São Cristovão em 1926 e do Bangu em 1933. Ou seja, pode se dizer que o negro arrombou a porta para ser valorizado e aceito no futebol. O que gerou até um racha de federações dentro do Rio de Janeiro porque, de acordo com Mário Filho, os elitistas não queriam se “misturar” com os negros, mulatos e operários dos clubes campeões. Preconceito sem máscaras.
Nunca esquecer o curto intervalo de tempo entre a abolição da escravatura, em 1888, e a aparição de Leônidas da Silva na Copa de 1938 na França. São apenas 50 anos de distância. Quem lê obras de sociologia e de história de futebol sabe que tal período é um sopro. As feridas estavam abertas.
As Copas do Mundo viraram um marco para que tal fardo fosse reforçado. Brechas eram suficientes para destruir a vida de pessoas que tinham o futebol como porta ao paraíso e que depois viraram a estrada do tormento e da decepção.
Barbosa, um dos artistas do “Expresso da Vitória”, comandado por Flávio Costa na década de 1950 e base da Seleção Brasileira na Copa disputada no Brasil sentiu na pele os efeitos desta condenação sumária.
Todos esqueceram sua trajetória vitoriosa. As únicas recordações são os dois tentos sofridos por ele na final realizada no Maracanã no dia 16 de julho de 1950. Foi crucificado ao lado de Juvenal e Bigode, outros dois negros.
De modo cruel, convencionou-se a acreditar de que arqueiro negro era sinal de azar, reforçado com Manga na desastrosa campanha da Copa na Inglaterra em 1966 e, posteriormente, somente Dida foi titular em uma Copa, na Alemanha. Barbosa teve ainda que suportar uma vergonha absurda, a de ter sido barrado em um treino de preparação para a Copa do Mundo de 1994. Desculpa: sua presença traria azar aos arqueiros Taffarel, Zetti e Gilmar Rinaldi.
Diante disso, compreende-se a sua atitude de pegar para si as traves de madeira do inicio do Maracanã. Tudo para esquecer o passado sombrio.
Que não se esqueça do sofrimento vivido por Pelé. O atual e eterno Rei do Futebol foi dado como acabado. Isso porque foi campeão em 1958 e 1962. Não bastava ao negro chegar ao topo. A absolvição só surgiria se ele ficasse eternamente entre os melhores, o que de certa forma foi obtido por Pelé após o tricampeonato.
O drama parecia superado quando veio 1982. Quem leu “O trauma da bola”, reunião de artigos de autoria de João Saldanha, sabia que as laterais exibiam problemas de marcação, o time mostra oscilações e que a Itália era uma bela equipe. Nada disso. Tudo desprezado. O que ficou de saldo foi o erro de Cerezo, um negro, e a conclusão certeira de Paulo Rossi.
Poderia citar outros fatos que demonstram a culpabilidade depositada em cima do atleta negro no Brasil, especialmente quando o assunto é Seleção Brasileira, como a trajetória de Rivaldo, com duas Copas de alto nível no currículo (1998 e 2002) e que, mesmo assim, não tem o reconhecimento. O mulato que venceu a fome no nordeste tem conquistas, mas parece um refugiado no seu próprio país.
Faço um contraponto. Perceba quantas desculpas são buscadas para justificar o erro de Zico na Copa do Mundo de 1986, nas quartas de final diante da França. Ou como ninguém culpa Rivelino, camisa 10 na Copa de 1974 pelo quarto lugar obtido na primeira edição do mundial na Alemanha. O que dizer então de Kaká, astro principal nas Copas de 2006 e 2010, jamais foi colocado na berlinda. Foi criticado, sim. Mas não no nível por exemplo, de Ronaldo Nazário ou de Ronaldinho Gaúcho pelo resultado na Copa na Alemanha e a derrota para a Alemanha. Inconscientemente, os brancos sempre são inocentados ou tem sua pena reduzida. Uma reprodução do que ocorre na sociedade.
Fernandinho é o vilão da vez. Crucificado em praça pública. É rico. Estabilizado. Ainda bem. Mérito dele. Vida assegurada aos familiares. Mesmo assim, o seu ombro servirá para esconder falhas de posicionamento de um equipe comandada por um técnico capaz, bem intencionado, agregador, mas que errou, falhou e, graças aos seus sorrisos e discurso agregador, convence a todos da necessidade de sua continuidade.
No futebol, todos perdem. Se a vitória é coletiva, a derrota deveria ser. Para quem ousa quebrar a barreira social e triunfar sabe do que risco de receber a cruz da vilania. De modo injusto. Que Fernandinho tenha força para superar e seguir em frente. Porque você queira ou não ele é um vencedor.
Fernandinho, da seleção brasileira, é xingado por racistas nas redes/Reprodução: Instagram
(texto de autoria de Elias Aredes Junior)