Guarani: o encontro do Camisa 10 com sua razão de viver

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O treino foi puxado. O sol já tinha ido embora. Um rastro de escuridão começava a invadir o gramado do Brinco de Ouro. Jogadores extenuados, exaustos na parte emocional. Todos queriam dirigir-se ao vestiário, tomar o seu banho e encontrar seus familiares. Um destoava.

Era o camisa 10. Com 40 anos recém-completados, a movimentação ao redor não lhe afetava. Disperso, distante de tudo e de todos. Sabia que fazia seus últimos treinamentos. Teria até novembro para vestir a camisa do clube que tanto dedicou sua reta final de carreira. O Guarani.

No fundo tinha um sentimento de frustração. Abalado. O corpo arqueado, o rosto contrito, a fala mais baixa como de costume era o reflexo de anos e anos de fugas de rebaixamento e convivência com dirigentes incompetentes.

No fundo, não suportava mais. Continuava na luta. Não sabia o motivo. Dinheiro? Nem tanto. Estava estabilizado financeiramente, tinha família estável, carinhosa e solidária. Não parecia suficiente. O coração vivia apertado.

Pensava em ritmo de flashback. Caminhava pelo gramado até parar em frente do gol localizado no placar eletrônico. Deu alguns passos, dirigiu-se ao fundo da meta, ergueu os braços e agarrou com toda a força a rede. Naquele dia parecia mais branca do que de costume. Recordou gols, jogadas, a torcida enlouquecida e com seu nome na ponta da língua. Rotina de ídolo. Agora, um ídolo frustrado, quase sem rumo. Perdido nos seus pensamentos, a voz interrompeu a reflexão:

– Você fez o certo. Está no lugar que sempre lhe acolheu…

Um susto. Mistura de pânico e incredulidade. O camisa 10, acostumado a tantos marcadores implacáveis e gigantes, agora paralisado, não sabia o que fazer. Após alguns minutos, a reação:

– Quem está querendo tirar sarro da minha cara? Que coisa mais sem graça!

Como um peão, ele rodopiava a procura do interlocutor. Em vão. Quanto mais dirigia seu olhar aos cantos do gramado, mais combustível na voz era colocado:

– O que é isso cara? Não me reconhece? Como pode cometer essa desfeita? Sem minha presença, você não seria nada. Do que adianta bater pênaltis, faltas, chutes de média e longa distância, se a bola não encostar aqui? He He He…Claro, sempre do lado de dentro- terminou a frase o misterioso conselheiro e com arremate de uma risada baixa.

O enunciado fez cair a ficha. O camisa 10 estava incrédulo, embasbacado, sem reação. Não podia ser aquilo que imaginava. Seria absurdo dos absurdos…

– Caramba, a galera brinca comigo…Rede não fala! Nem trave, forquilha…Eu tenho 40 anos, mas não estou louco. Ô Páscoa, pára com isso, saí daí! Quem é que está armando isso com você?- desesperou-se o camisa 10, com os nervos à flor da pele.

– Calma, ninguém quer lhe iludir ou fazer você de bobo não. Sou eu mesmo- disparou o interrogador

– Mas Rede fala? Desde quando?- pressionou o camisa 10.

– Desde o momento que eu acho importante. Este é um deles. Já faz tempo que observo você. Cansado, exaurido, frustrado. Contava os dias para esperar a sua chegada aqui. Queria conversar contigo, te mostrar o quanto é gigante.

– Bem, pelo que falam por aí não parece- disse o armador veterano, já com disposição ao diálogo.

– Bobagem, está equivocado. Só que deixe lhe perguntar: o que lhe aflige? Qual sua angústia- disse a “Rede”, sem saber que abriria a chance de sua “vitima” destravar magoas e mágoas de tempos passados

– Cara, eu poderia encontrar-me em casa. Cuidar dos meus filhos. Já dei tanto pelo Guarani e por outros clubes. Estou aqui. Todos os dias. Treino, oriento os garotos, ajudo os treinadores no que é possível e nos jogos eu vou além dos meus limites. Parece pouco. Os dirigentes pegam no pé, a imprensa me arrebenta, a torcida fica impaciente e no final poucos se importam comigo, com meus sentimentos, com meu esforço. Será que ninguém vê o vinculo que tenho com tudo isso? Ninguém conta a minha dedicação? Ainda bem que vou embora para casa em novembro. Já que desejam me esquecer eu farei minha parte – terminou o camisa 10, já com os olhos marejados.

– Pare com isso! Não se deixe engolir por esse mar de pessimismo- rebateu a Rede!

– Tá, então o que faço?

Um silêncio instalou-se no local. Aqueles 30 segundos eram eternos. Quando o experiente jogador já se encaminhava para o vestiário, veio o sermão:

– Me escute por cinco minutos. Depois faça o que bem entender. Aliás, não faça. Porque a sua mente esgotada impede de ver o óbvio…

– Como assim?

– Ora, você é parte disso aqui. Seus pés foram o alicerce para tardes e noites de alegria e redenção. Sua liderança e habilidades fizeram com que centenas de atacantes, laterais, zagueiros e até volantes colocassem a bola aqui perto de mim. Como vou esquecer a alegria alucinada produzida nas arquibancadas? E quando você era o protagonista? Suas cobranças de escanteio venenosas, suas batidas de falta magistrais. Ah, como era gostoso ver que a bola chegava até aqui de maneira tão doce, prazerosa…

– É, foram muitos gols aqui…

– No total foram 89, seja aqui ou fora daqui. Como ignorar isso? Como esquecer?

– É, talvez você tenha razão- assentiu o camisa 10, já com um sorriso contido nos lábios.

– Claro que sim. O que você fez ninguém vai apagar. O gol olímpico contra o Palmeiras em 2012, as atuações decisões em 2013, 2014 e 2015 que impediram o nosso time de passar a vergonha da Série D…

– Gostei de ver…Para uma rede até que conhece bem a história do clube…

– Conheço porque sinto. Vivi jornadas épicas. O que você fez naqueles 6 a 0 sobre o ABC? Meu Deus…A partir daquele dia entendi porque te chamam de Fumagol…

– É, gostoso receber um apelido desses

– E sabem porque lhe dão esse apelido? Porque você é vital. É integrante da história do Guarani. Por mais que critiquem, não ligue. Eu aqui parado estático e aqueles que sentam nestas arquibancadas não temos apenas idolatria por ti. Temos gratidão. Gratidão por jogar aqui por anos e anos e na pior fase. Quando todos viraram as costas. Quando os engravatados brigavam nos gabinetes o Guarani definhava. E você ficou firme. Lutou, guerreou, batalhou. Nunca desistiu. E não é agora que vai jogar fora todo este patrimônio. Bem, já anoiteceu, preciso encerrar e te deixar em paz. Posso fazer um último pedido?

– Sim, pode- concordou o camisa 10, já relaxado e com a postura de quem conversava com um amigo de longa data.

– Não sei quanto tempo vão lhe utilizar nos jogos restantes. Se cinco, 10, 15 ou 90 minutos. Só te peço: faça o que sempre fez. Transforme essa camisa na segunda pele. Estipule cada cobrança de falta como se fosse a última de sua vida. Cobre o escanteio como se daquilo dependesse a nossa sobrevivência. Quando o jogo for no Brinco eu e meu irmão lá do outro lado estaremos prontos para receber a gorducinha de braços abertos. E nos jogos longe de Campinas pode ter certeza: meus primos não vão ficar bravos. Talento sempre é bem vindo.

O camisa 10 iria responder mas foi interrompido pelo roupeiro que estava a sua procura. Pegou-lhe pelo braço ao vestiário. Ainda tonto, sem rumo, entrou nas dependências e foi recepcionado pelos companheiros.

– Ei, Fuma, o que aconteceu? Nunca demorou tanto- cobrou o zagueiro recém-chegado.

– Ah, resolvi ficar por lá, para refletir, tomar algumas decisões- respondeu o maestro.

– Decidiu algo?

– Sim. Que preciso ter mais intimidade com a rede.

(crônica de ficção de autoria de Elias Aredes Junior)