O Brasil imita o futebol. Ou os gramados seguem a vida nacional? Está aí um dilema difícil. Somos um país contraditório, confuso, por vezes sem rumo e com papéis invertidos. Quem é vilão vira mocinho. Coadjuvante vira protagonista. Reviravoltas permeiam o cotidiano. Não é fácil acompanhar este roteiro embalado em verde e amarelo.
O futebol tem resistência a integrar conceitos positivos do cotidiano: o planejamento, a busca da excelência, o entendimento que a eficiência em médio e longo prazo é que gera frutos. É errado apostar na alegria efêmera de um título conquistado por intermédio de um doping financeiro. É pueril, artificial, sem sentido.
Os grandes times da atualidade, Flamengo, Fortaleza e Palmeiras, talvez tenham como grande mérito a transformação da banalidade em ativo. Sim, um resultado excelente de uma empresa ou de uma quitanda é montado a partir de centenas e milhares de dias monótonos. Tijolo por tijolo, passo a passo. Sabe aquele mercado gigantesco perto da sua casa? Um dia foi um mercadinho de esquina. Ou uma barraca montada na rua. Uma, duas, três pessoas, acreditaram em um sonho e isto virou realidade.
Mesmo que com uma adesão pequena, alguns clubes de futebol absorveram a banalidade para alcançar o olimpo.
E a vida brasileira? Absorveu algo do futebol? Não vou repetir os fatos ocorridos em Brasília nos últimos dias. Você sabe. Todo mundo teve contato. As redes sociais -ou antissociais- absorveram tudo. Um condena dali, outro absolve daqui, a cautela aparece dali, presunção de inocência reclamada acolá.
Ao ler tantas análises e teorias lembrei de uma lição simples transmitida por um advogado com área de atuação em Campinas. Ele me disse: “Justiça todo mundo tem um conceito. É formado a partir de sua vivência. Direito é a letra da lei. Mas para sair do papel e vire algo prático, é preciso prova material”.
Não é à toa que em muitos casos o veredito é antecipado pela opinião pública. Quando a sentença judicial absolve figura A ou B a frustração vem acompanhada de revolta. A opinião pública não entende: a lei é para todos. Desde que venha acompanhada de provas. Materiais e concretas.
Tal cenário não apaga uma herança transmitida pelo futebol ao mundo real: a absolvição antecipada.
Lembra daquele craque que você tomou conhecimento de que “quebrou a noite”? Ou daquele jogador que cometeu um ato deplorável? Lembra que bastava eles balançarem as redes que estava tudo perdoado? E o jogador que desrespeitava o treinador, o dirigente, envolvia-se em confusão familiar e eis que de repente todos esqueciam de suas transgressões porque fez o gol do título? Mesmo que seus pecados fossem chancelados por provas. De nada adiantava. Absolvição antecipada.
Transmitimos esse conceito para a vida nacional. Ninguém deve ser condenado antecipadamente. Ou ser vítima de massacre midiático. Vai contra o estado de direito. Mas a presunção de inocência – conceito essencial no Direito- não pode servir de álibi para se ignorar ou afrouxar qualquer investigação, ou pesquisa sobre um pecado cometido por A,B ou C. Por mais que alguém seja genial em sua área de atuação, isso não serve de argumento para que a presunção de inocência seja utilizada como paralisia sobre o que ocorre ao nosso redor. Na presunção de inocência, O acusado é considerado inocente até que a sentença penal condenatória transitar em julgado. Mas esta sentença pode ser modificada. Para isso, servem as investigações. E estas devem seguir.
Esse foi o principal defeito transmitido do futebol para a realidade. Os fãs enlouquecidos não querem ver a desconstrução de alguém construído por décadas. Reivindicam a absolvição antecipada. Ou seja, que a presunção de inocência, seja definitiva. Que os órgãos competentes não façam seu trabalho. Que não ocorra investigação. Do outro lado, carniceiros extremados aproveitam dores e traumas para satisfazerem sua gana de vingança. De apontar no outro a hipocrisia que, no fundo, está presente em sua alma. No fundo, eles não querem justiça e, sim, querem esconder seus pecados. Assim como um jogador que dá uma entrada por trás e finge que não é com ele.
Nem absolvição antecipada e nem sede de carnificina. Apenas Justiça e cumprimento da letra da lei. Preservação da integridade das vítimas e nunca, em hipótese nenhuma, descredibilizar o sofrimento da vítima. No futebol e na vida em sociedade. Assim podemos alcançar o que importa: um país mais justo e feliz. Sem preconceitos. Ou assédios contra mulheres, ou para qualquer população desprotegida. Esse é o mundo ideal. Para todos que vivem em sociedade e no futebol.
(Elias Aredes Junior com foto de Bia Santana/Getty Imagens)