Ensaio Especial: uma viagem pela história e o predomínio da escola gaúcha na Seleção Brasileira no Século 21

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Tite é unanimidade. Técnico de Seleção Brasileira com maior grau de popularidade nos últimos anos. Pelo Datafolha, antes da Copa começar, o grau de sua aprovação era de 64%.

Marcação forte, esquema tático definido, disciplina, bom relacionamento com Neymar e entrevistas coletivas focadas na simpatia e na explicação pormenorizada são os pilares de seu trabalho.

Sua presença na Copa do Mundo é o triunfo da escola gaúcha de futebol. É o terceiro pela desde 2010.

Começou com a disciplina e a rigidez de Dunga, passou pela amabilidade rústica de Luiz Felipe Scolari e agora desemboca em Adenor.

Pontos em comum? A obsessão pela marcação, o gosto pelo contra ataque e valorização das raízes no estado em que nasceu. Buscaram o conhecimento em outras partes do mundo, mas não desprezam os ingredientes presentes nos pampas.

Esta ideologia presente nos corredores da CBF contrasta com o histórico do futebol brasileiro.

Nas duas primeiras copas, os técnicos Píndaro de Carvalho e Luis Vinhais sofreram com as brigas entre paulistas e cariocas e que impediram até a convocação de alguns valores.

A paz veio na Copa de 1938, na França, quando Ademar Pimenta, após a boa campanha com Madureira (vice-campeão carioca), em 1936, teve o caminho aberto para assumir o time e iniciar um domínio carioca, cujas estrelas principais eram o zagueiro Domingos da Guia e o centroavante Leônidas da Silva. O terceiro lugar abriu o caminho para que a escola carioca dominasse o escrete canarinho.

FLÁVIO COSTA E O EXPRESSO DA VITÓRIA

Flávio Costa comandou o Vasco em sua fase positiva na década de 1940 e a Seleção Brasileira

Apesar da paralisação da Copa do Mundo pela  segunda guerra mundial, a quarta edição do mundial no Brasil sacramentou o domínio dos cariocas com a nomeação de Flávio Costa. Comandante do “Expresso da Vitória”, o Vasco vencedor do Torneio Sul-Americano de 1948 e que formou a base da Seleção Brasileira campeão Sul-Americana em 1949 e que sagrou-se vice-campeã mundial em 1950, forneceu oito jogadores (Barbosa, Augusto, Ely, Danilo, Ademir Menezes, Alfredo, Chico e Maneca).

Perder do Uruguai no Maracanã diante de quase 180 mil pagantes poderia ser o fim da influência carioca na Seleção. Ledo engano. Na Copa de 1954, na Suiça, a Confederação Brasileira de Desportos apostou em Zezé Moreira, que anteriormente trabalhou em Fluminense e Botafogo. A interrupção das lições dos “professores” cariocas terminou com a eliminação nas quartas de final para a Suíça.

PAULO MACHADO DE CARVALHO, O REVOLUCIONÁRIO

A revolução de Paulo Machado de Carvalho abriu espaço para o dominio da escola paulista

A reviravolta surgiu nos preparativos para a Copa do Mundo de 1958. Após idas e vindas de treinadores de diversas escolas ( Vicente Feola, Flávio Costa, Oswaldo Brandão, Silvio Pirillo e Pedrinho), a CBD, por intermédio de João Havelange nomeou Paulo Machado de Carvalho como chefe da delegação e este apostou em Vicente Feola, que atuava como auxiliar técnico de Bella Gutman, responsável por uma revolução técnica no São Paulo e que culminou com o titulo paulista de 1957 após vencer o Corinthians por 3 a 1.

Carvalho aplicou as metodologias que reinavam no futebol paulista, como a presença de dentista, psicólogo e uma relação paternal com os jogadores. A conquista na Suécia foi o fruto colhido. Foi quando o Brasil exibiu um futebol ofensivo, encantador e alto grau de competição.

Vide Zagallo, oriundo do Botafogo, transformado em meio campista. Estava lançado o 4-3-3. Quatro anos depois, sem precisar disputar as eliminatórias, Paulo Machado de Carvalho, com mão de ferro, manteve as premissas do trabalho vitorioso e em 1961, após nova rotatividade de treinadores nomeou Aymoré Moreira, que atuava na Seleção Paulista e conciliava as atividades na Seleção Brasileira com os do São Paulo, clube do coração do “Marechal da Vitória”.

O Santos era o principal time do país. O Palmeiras ostentava a “Academia”. O São Paulo, apesar de contar com um time humilde, tinha suas atenções na construção do Morumbi, que ostentou o título de maior estádio particular do mundo.

Tudo perfeito? Domínio eterno da escola paulista de futebol? Nada disso. Em 1966, Paulo Machado de Carvalho tentou repetir a fórmula de sucesso de 1958. Com uma dose de bagunça e desorganização o time foi eliminado na primeira fase e  encerrou a passagem de Vicente Feola e de Paulo Machado de Carvalho na Seleção Brasileira.

Vários testes foram realizados e nenhum técnico parecia encaixar no desejo e nos anseios do torcedor brasileiro. Até que em 1969, Havelange surpreendeu ao convidar o comentarista esportivo e jornalista João Saldanha, naquela altura o principal crítico da CBD. Com frases fortes e calcado na obsessão de formular sua base em Santos, Cruzeiro e Botafogo, Saldanha retomou de modo empírico ofensivo característico da escola carioca e construiu uma campanha irretocável nas eliminatórias. Posteriormente, em março de 1970, uma série de confusões (inclusive com Pele) encerraram sua estadia no escrete após 17 partidas e aproveitamento de 85,29%.

ZAGALLO, A ASCENSÃO DA CIÊNCIA COM A VISÃO CARIOCA DE FUTEBOL

O imprevisto gerou dúvidas: que caminho seguir? O que fazer? Que escola de futebol abraçar? O passo inicial foi a nomeação de Zagallo, comandante do Botafogo, bicampeão carioca em 1967 e 1968. A montagem da Comissão Técnica combinava com o período da ditadura militar.

A nomeação de Zagallo para Copa de 1970 viabilizou o domínio do estilo carioca como também a formação do melhor time de todos os tempos

A Escola de Educação Física do Exercito forneceu o preparador físico Claudio Coutinho e que tinha como auxiliar Carlos Alberto Parreira. O estilo carioca, representado por Zagallo, juntamente com os métodos científicos desenvolvidos no exercito desembocaram na aplicação do método Cooper e produziram a conquista do tricampeonato mundial e o quarto lugar no Mundial da Alemanha.

Zagallo saiu e novas oportunidades aos profissionais da bola. Até Oswaldo Brandão, que, apesar de Gaúcho era um legitimo representante do estilo paulista, ou seja, a junção da técnica, habilidade, espírito de competição e uma dose de malícia. Na hora “h”, o Almirante Heleno Nunes não pensou duas vezes e promoveu o retorno dos cariocas ao tablado com a nomeação de Cláudio Coutinho.

Claudio Coutinho, o incompreendido

Que virou de ponta a cabeça o futebol com expressões como ponto futuro, overlapping e outras nomenclaturas táticas que permanecem até hoje. No campo, não teve pudor em jogar as favas os conceitos e preceitos de futebol bonito (patrimônio dos cariocas) para escalar o rústico volante Chicão no embate com a Argentina e que terminou sem abertura de contagem.

A partir deste instante, a Seleção Brasileira passou a definir os seus comandantes nem tanto pela escola que representavam, mas sim pelas vitrines em que surgiram.

Prova disso foi a escolha de Telê Santana. Campeão Brasileiro pelo Atlético Mineiro em 1971 e gaúcho pelo Grêmio em 1977, o mineiro de Itabirito (MG) não exibia os trunfos necessários para exercer o cargo.  Tudo mudou com o Campeonato Brasileiro de 1979.

A ERA TELÊ SANTANA E O FUTEBOL DE SONHOS

No comando do Palmeiras, Telê montou uma equipe voluntariosa e ofensiva, capaz de aplicar 4 a 0 no Flamengo no Maracanã e ser resistência ao Internacional que foi campeão brasileiro invicto. As performances na Espanha e a queda diante do Itália foram tão fortes que Carlos Alberto Parreira, Edu Coimbra e Evaristo Macedo, todos representantes da escola carioca não fizeram bons trabalhos e não impediram o retorno de Telê Santana para a Copa do México.

Telê Santana, inesquecível

João Havelange não dava ponto sem nó. Queria o retorno  dos cariocas ao banco de reservas.

Por intermédio da eleição do sogro Ricardo Teixeira, avalizou a escolha de Eurico Miranda como diretor de futebol e posteriormente de Sebastião Lazaroni, fortalecido após conquistar a Copa América de 1989 no Brasil. A debacle nos campos italianos poderia abrir a queda do estilo carioca de futebol. Quebrou a cara quem apostou em tal cenário.

PARREIRA RETORNA E FAZ HISTÓRIA

Em 1991, o Campeonato Brasileiro foi decidido entre o São Paulo de Telê Santana e o

Parreira: o pragmatismo com jeito carioca e espirito competitivo paulista faturou o tetra

surpreendente Bragantino de Carlos Alberto Parreira, que recebeu o holofote necessário para retomar o cargo. Político e hábil, Parreira fez uma junção das escolas paulista e carioca, ao apoiar-se em Zagallo para ser seu coordenador técnico e em Moraci Santana, vitorioso no São Paulo, para ficar responsável pela preparação física.

Em contrapartida, a preparação de goleiros ficou com Wendel, que fez fama no Botafogo e o departamento médico com Lídio Toledo, por anos e anos vinculado ao time da Estrela Solitária.

Essa formula mista conduziu a equipe ao tetracampeonato e ao vice-campeonato na França, cujo comando estava com Zagallo e Zico como coordenador técnico.

No gramado, foi um time ofensivo, criativo e que parou diante da França de Zidane.

COMEÇA O DOMÍNIO GAÚCHO

Fatos devem ser rememorados para entender porque hoje temos um domínio da escola gaúcha no gramado. O triunfo de um tem relação com o fracasso de outro. Neste caso, o fracasso atende pela escola paulista, pela visão paulistana de se jogar futebol.

Esclarecimento: não tem relação não só com local de nascimento e sim onde a carreira foi construída. Após a saída de Zagallo, o nomeado foi Vanderlei Luxemburgo, um profissional com a vida feita em São Paulo. Não era para menos.

Luxa foi três vezes campeão brasileiro (duas com o Palmeiras e uma com o Corinthians), campeão paulista pelo Bragantino e maestro da máquina do Palmeiras vencedor do Paulistão de 1996. Predicados não faltavam.

A vitrine construída no futebol paulista parecia inabalável.

Luxemburgo em poucos meses de trabalho reavivou as características do futebol brasileiro e com a junção das escolas paulista e carioca: competitividade, habilidade, criatividade e solidariedade na marcação.

Uma mistura que deu uma Copa América, boa performance nas eliminatórias e que sucumbiu diante da eliminação nas Olimpiadas e as investigações da CPI do futebol. As tentativas com Candinho e Emerson Leão foram infrutíferas e o cargo caiu no colo de Felipão.

A conquista da Copa do Brasil de 1994, Libertadores de 1995 e do Campeonato Brasileiro de 1996 foi insuficiente para quebrar a resistência ao trabalho de Felipão no eixo Rio-São Paulo. Rabugento, fervoroso fã de um estilo violento de marcação e uma rivalidade exacerbada com o Palmeiras de Luxemburgo.

Como sair desta cilada? Simples: utilizar o futebol paulista como vitrine.

FELIPÃO CHEGA À SELEÇÃO E FAZ HISTÓRIA

Com jeito e estilo de Gaúcho, Felipão fez história

Ao assumir o Palmeiras em 1997, Luiz Felipe Scolari colecionou títulos e jogos épicos. Vice-campeão paulista diante do Vasco de Edmundo; campeão da Copa do Brasil contra o Cruzeiro; campeão da Copa Libertadores de 1999 e finalista da mesma competição após eliminar o Corinthians na semifinal.

Os resultados transformaram Felipão em fator de unanimidade nacional e assumir a Seleção Brasileira em 2001 foi algo natural. Com todas as características da escola gaúcho: o apreço por volantes de forte marcação, o cuidado com a defesa, a catimba, o espírito paternalista…No final, queiramos ou não, a formula deu certo.

Ao sacramentar o titulo mundial de 2002, Felipão declinou do cargo e abriu espaço para o retorno de Parreira. O titulo mundial de 1994 não foi a credencial fundamental e sim a boa campanha com o Corinthians em 2002, quando foi campeão da Copa do Brasil e vice-brasileiro.

Parreira buscou repetir a fórmula de 1994 e colheu uma campanha de 1966 melhorada, com a eliminação para a França nas quartas de final e uma confusão na preparação.

Após destaque no Grêmio e Corinthians, Mano Menezes cravou seu nome na Seleção Brasileira

Ou seja, deu subsídios para a CBF bancar o retorno da escola gaúcha com Dunga, que tinha a confiança do ex-presidente da Fifa, João Havelange.

Sisudo, cara amarrada, de poucas palavras e afeito a um futebol pragmático e de muita marcação, o ex-capitão do Tetra foi o resumo do estilo gaúcho de pensar futebol. Foi eliminado pela Holanda nas quartas de final, mas deixou boa impressão.

Não continuou pela desaprovação da opinião pública.

Seu substituto? Mano Menezes, revelado no XV de Campo Bom, com um currículo vitorioso no Grêmio (Batalha dos Aflitos e vice-campeão da Libertadores) e com um adendo poderoso: condutor do processo de recuperação do Corinthians, campeão da Série B de 2008 e da Copa do Brasil e do Paulistão de 2009.

Dunga foi de poucos sorrisos nas duas passagens na Seleção Brasileira

Ao cair em 2012, pelos maus resultados, o substituto estava na ponta da agulha: Felipão, campeão da Copa do Brasil de 2012 pelo Palmeiras e beneficiado pela memória afetiva de 2002.

Afoitos poderiam decretar o fim da escola gaúcha na Seleção Brasileira em virtude do 7 a 1 diante da Alemanha. Afinal, o principal treinador do estado foi o arquiteto da escalação desastrosa.

Estilo de jogo é importante, mas os técnicos gaúchos contam um componente precioso: postura. Seriedade, determinação, a disciplina tática e a fome de vencer formam o caldeirão presente em Dunga, que retornou ao cargo após a queda de Felipão. Não deu certo.

Seu estilo rústico em excesso contrastava com jogadores que agora não tinham apenas como bussola as escolas de futebol reinantes no Brasil. Eram cidadãos do mundo. Não admitiam uma receita pronta, limitada e ainda cerceava a liberdade. Não demorou e a queda abriu espaço para a nomeação de Tite.

TITE PODE COMEÇAR UMA NOVA DINASTIA NA SELEÇÃO?

O ex-volante de Guarani e Portuguesa é um profissional inteligente e esperto. Apesar de ter participado de uma campanha de rebaixamento (o Atlético Mineiro, em 2005), sua trajetória no Corinthians transformou-se em um cartão de visitas imbatível: faturou os Brasileirões de 2011 e 2015; medalha de ouro na Libertadores e no Mundial de 2012; responsável pela conquista do paulistão de 2013 e de um estilo forte, alicerçado na marcação, no contra-ataque e na compactação.

Competitividade a flor da pele. Uma mistura de gaúcho com paulista. Junte tudo isso a um discurso fácil, sedutor e capaz de convencer astros que sequer tinham vontade de defender a comissão técnica anterior.

O fato é único: só um desastre total na Rússia poderá interromper a dinastia de Tite e da escola e do pensamento gaúcho de futebol.

Bom ou ruim? Não sabemos. Só que os preceitos são sólidos e uma mudança de rumo dificilmente acontecerá. A escola gaúcha deverá continuar.

(Ensaio especial de autoria de Elias Aredes Junior)