Bruno Ribeiro é jornalista. Hospitaleiro. Generoso. Bugrino. Amante do futebol. Fã dos jogadores emblemáticos. Pelé é um deles. Tem admiração irrestrita pelo cidadão Edson Arantes do Nascimento. Tem orgulho de que ele seja brasileiro e de sua história. Tanto que comprou um pôster. Colocou em um dos cômodos do apartamento. Queria relembrar os feitos e a dinastia do Rei do Futebol.
O quadro emoldurado, a face serena do Rei lhe inspirava. E gerava reações nos amigos que lhe visitavam antes da pandemia. Olhares de raiva, ressentimento, cobrança. Não existia reverência, homenagem ou gratidão. Pelé para aquelas pessoas não deveria encontrar-se ali. Era um pária. Um traidor. Por que? Por qual motivo? O mistério ganha contornos indecifráveis se levarmos em conta que Pelé é o modelo do brasileiro comum: negro (54% da população), nascido no interior de Minas Gerais (Três Corações), admirador da boa música e da prosa fácil. Nada se encaixa. Tudo fica desconexo. A obra e o feed back do público.
Queiramos ou não, Pelé é vitima também do racismo estrutural. Um sentimento intrínseco presente na sociedade brasileira. Como podemos definir? Sociólogos afirmam que é a naturalização de ações, hábitos, situações, falas e pensamentos que já fazem parte da vida cotidiana do povo brasileiro, e que promovem, direta ou indiretamente, a segregação ou o preconceito racial.
De acordo com o filósofo, jurista e professor universitário Silvio de Almeida a forma como a sociedade é constituída reproduz parâmetros de discriminação racial, no campo da política e da economia, sendo o racismo estrutural naturalizado como parte integrante do meio social.
Exemplo prático: você vai em um restaurante, e as mesas são ocupadas por clientes brancos e os garçons são todos negros. Qual a sua reação? Nenhuma. Você normalizou a cena. E como Pelé entra na conta? Veja: Maradona cometeu mil e um pecados e ainda é idolatrado pelo povo argentino. E Pelé? Achincalhar o Rei do Futebol no Brasil é um ato normal e corriqueiro. Racismo estrutural na veia.
PARA ALGUNS, NEGRO DEVE FICAR NO SEU LUGAR. INCLUSIVE PELÉ
No fundo, a revanche contra Pelé é um clamor para que todos os negros fiquem em seus lugares subalternos. Repito: Inclusive Pelé. Não avance um passo sequer. Um aviso embutido: se quiser protagonismo, esteja preparado para as cobranças.
Pelé fez o milésimo gol e dedicou as criancinhas? Demagogo. Afirmou que o Brasileiro não sabe votar? Intrometido. Criticou companheiros de profissão? Um poeta se estiver calado. Descobre-se uma filha fora do casamento? Desalmado, injusto, ingrato, cruel. Julgamento a luz do dia. Ao vivo e a cores.
Não digo que Pelé não merece críticas. Nada disso. É pessoa pública. Humana. Queria entender apenas porque a regra para medir as atitudes de Pelé é tão rígida enquanto de outros personagens ganham uma flexibilidade imensa.
Veja o caso de Airton Senna. Aviso: aqui não vai contestação ao ídolo, tricampeão do mundo de Fórmula 01. Este foi genial. Mas o homem, o cidadão Airton Senna da Silva. Que todos nós, era contraditório. Que decidiu campeonatos com manobras, no mínimo, constrangedoras. Ou foi limpa a conquista do Mundial de 1990?
E o que ganhou em troca? Compreensão do público. Veja: Senna viveu o seu auge de grande temperatura política: Diretas Já, Eleição de Tancredo Neves, escolha de novo presidente, impeachment de Collor, Constituinte. Nunca, jamais, em tempo algum, a imprensa fez uma marcação cerrada para que o ex-piloto fizesse declarações para pender no lado A ou B. Longe disso. Com Pelé, o papo é diferente. Precisa falar. Como retribuição, é criticado. Impiedosamente.
COBRANÇA E PRESENÇA NO PURGATÓRIO
Quanto as questões de foro íntimo, o tratamento dado a Pelé chega a ser cruel. Enquanto é cobrado quase todos os dias pelo tratamento dado a falecida filha Sandra, verificamos diversos ex-jogadores e atletas em atividades com diversos deslizes semelhantes e que a imprensa trata ou de maneira folclórica ou de modo digamos, afrouxado. Para Pelé, todo o peso do mundo. Para as celebridades brancas e travessas, a absolvição. Ou purgatório.
Na atuação política, não há como negar a perseguição. Propôs uma lei que viabilizou a liberdade de ação aos jogadores brasileiro. Não é perdoado. É massacrado. Primeiro pela lei e depois por sua atuação como ministro dos Esportes de Fernando Henrique Cardoso. Enquanto isso, Zico foi secretário de Esportes do governo de Fernando Collor de Mello, encaminhou propostas similares a Lei Pelé e nunca, jamais é cobrado. Tanto pela lei como pela participação no governo Collorido.
Tal injustiça é elevada a décima potência quando afirmam que Pelé não fez nada na luta contra o racismo e na afirmação do negro brasileiro. Sua obra fala por si: mais de 1380 gols, três campeonatos mundiais de seleções, bicampeão mundial de clubes, conquistas em âmbitos regionais e nacionais…Quer propaganda melhor para a causa do negro no Brasil? A militância é vital. Propor leis afirmativas é fundamental. Mas existem outras formas de luta. Pelé abraçou a performance. Deveria ser respeitado.
Pelé escolheu o gramado como seu palanque. Seu discurso era um gol de bicicleta, uma falta magistralmente cobrada, um drible envenenado, uma arrancada fulminante capaz de deixar na saudade dezenas de adversários. Uma mistura de talento com autoconfiança, determinação e foco.
Sem contar o poder de parar guerras, ser recebido por chefes de estado, entre outros feitos. Foi usado? Fez escolhas erradas? Concordo. E quem não fez?
O protagonismo de Pelé na luta contra o Preconceito Racial
Por anos e anos fui iludido por tal conceito. Pesquisar livra a alma. Liberta. E esclarece.
Pegue o livro “O Negro no Futebol Brasileiro”, de autoria de Mário Filho. Está na página 341 um pensamento do escritor em plena década de 1960: (….) Dondinho era preto, preta dona Celeste, preta vovó Ambrosina, preto o tio Jorge, pretos Zoca e Mária Lucia. Como se envergonhar da cor dos pais, da avó que lhe ensinara a rezar, do bom tio Jorge que pegava o ordenado e entregava-o à irmã para inteirar as despesas da casa, dos irmãos que tinha de proteger? A cor dele era igual. Tinha de ser preto. Se não fosse preto não seria Pelé (…)”. Um gênio das palavras descreveu com perfeição uma divindade da bola.
A segunda prova de seu compromisso com as causas da comunidade é de autoria do próprio Pelé. No dia 01 de abril de 2014, um pouco antes da Copa do Mundo realizada no Brasil, Pelé lançou o livro “Pelé: a importância do futebol”, que trazia sua visão da modalidade no período de 1950 a 2014. Foi um depoimento ao escritor e jornalista Brian Winter.
Pelé reservou um pedaço da obra para falar sobre a experiência como ministro dos Esportes no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Na página 205, Pelé demonstra por A mais B que tinha consciência do seu papel na luta contra o preconceito racial. “(…) Era uma honra poder servir ao meu país e de um modo oficial e eu me sentia grato pela confiança depositada em mim pelo presidente e pelos brasileiros. E também estava orgulhoso de ser o primeiro ministro negro a compor um gabinete na história do Brasil (…)”. Um negro alienado e desligado faria esta declaração?
O IDOLO QUE ROMPE BARREIRAS
Estudiosos da questão racial no Brasil também vislumbram protagonismo de Pelé neste tema. Silvio de Almeida, não teve duvida em eleger o camisa 10 eterno do Santos como um de seus ídolos. Detalhe: seu paí, Barbosinha, foi goleiro do Corinthians. “Podem falar o que quiser, mas aquela imagem, daquele homem negro com uma camisa 10 nas costas, e com punho levantado foi essencial na minha vida e na minha construção como homem negro. Para minha consciência racial foi fundamental”, afirmou o filosófo em entrevista no podcast “Hoje Sim”, de Cleber Machado, no dia 03 de julho.
“Ele (Pelé) foi a primeira referência que eu tive de um homem negro que foi o melhor no mundo naquilo que ele fazia. A figura do Pelé é muito forte”, completou Silvio de Almeida.
Pelé já não tem o vigor de antigamente. Anda com dificuldade. Precisa de cuidados. Em suas costas encontram-se uma história única. Brasileira. Comovente. Pelé é um patrimônio do Brasil. Cuidá-lo com amor e empatia é o mínimo que se espera de um povo que teve tantas alegrias por intermédio de seus pés. Quando isso acontecer não tenho dúvida de que será dado mais um passo na ultrapassagem deste racismo estrutural que corrói as entranhas da sociedade brasileira há 520 anos.
(Texto e pesquisa: Elias Aredes Junior)