A solidão é nefasta. Produz reflexões. Você fica contra a parede. Faz você enxergar aquilo que não quer. No jornalismo não é diferente. O que este ofício, capaz de produzir adesão cega e incondicional e por vezes um isolamento sufocante, produz equilíbrio mental?
Estou com 26 anos de atuação profissional. Atuei em todas as editorias possíveis. Assessoria de imprensa. Rádio. Televisão. Jornal. Sou testemunha da transformação da comunicação diante. E lamento a dificuldade de exercer do meu jeito aquilo que escolhi. Jornalismo crítico. Independente. Contundente. Que fiscaliza o poder. E desculpe o tom pessoal, mas não tinha outro jeito. Até pela história de vida.
Nasci em berço pobre. Na época, periferia de Campinas. Jardim Amazonas. A luz do dia, não teria chance de realizar os meus sonhos. Tudo contra. Estudei em escola pública. Sem dinheiro para pagar cursinho. Motivo: em 1990, o governo Collor decretou o confisco. Do dia para noite ficamos ainda mais pobres.
Decidir ir contra a maré. Com apoio da minha mãe, Ester Pômpeo Aredes. Personagem vital. E você vai entender. Aos 17 anos eu completava o colegial no colégio Cyro de Barros Rezende, em Valinhos. Queria fazer jornalismo.
Tive uma ideia louca. Um primo tinha feito cursinho no ano anterior. Estava com as apostilas. Peguei um ônibus, fui até a vila Boa Vista e levei uma montanha daqueles cadernos. Passei dias e meses, enfiado nos livros e com o acordo feito com minha mãe na cabeça: passe no vestibular e farei de tudo para você se formar.
Essa estratégia tosca e quixotesca me levou a prestar o vestibular da Puc-Campinas. Fui livre, leve e desencanado. Alguns dias depois, sai a primeira chamada. Não estava lá. Passaram-se dias e dona Ester foi ao açougue. Compra com dinheiro contado. Carestia total. O Luizinho, o açougueiro, sabia o sobrenome inteiro dela. Ela tinha conta. Lembra-se da caderneta? Pois é. Ele pergunta: “Ô Ester, dá uma olhada no jornal aqui. Acho que seu filho passou”. Pois é. Quem divulgou que tinha passado foi o açougueiro. Lista publicada no Correio Popular. Detalhe: foi a primeira vez que meu nome esteve lá. A segunda foi na divulgação do casamento.
De sacola na mão, minha mãe acordou todos em casa. Festa pela noticia. E o temor. Não temos dinheiro. O que fazer? Como fazer?
Recentemente falecida, minha tia Noemia, irmã da minha mãe, emprestou uma parte do dinheiro e a outra veio de uma Igreja Evangélica que frequentávamos. Devolvemos a quantia no mês seguinte.
Por 48 meses, o acordo era o seguinte com meus pais: nada de comprar roupa, ir ao shopping, cinema ou viagens. Nada, nada, nada. Tudo deveria ser conduzido para pagar as mensalidades da Puc-Campinas. Sacrifício. Entrega. Dedicação. E aprendizado. Sobre o que é jornalismo. Como deveria ser feito.
Do outro lado, eu assistia o sacrifício de minha mãe. Dois empregos. Das 18h às 06h ela trabalhava na Central de Materiais. Uma hora depois atuava no Caism da Unicamp. Quando saia da Unicamp e tinha plantão para cumprir eu e minha irmã cansei de ver a seguinte cena: minha mãe deitada no sofá, o despertador tocava as 16h30. Ela corria, entrava no banheiro e a cena era de cortar o coração: nua, dentro do box, ela tomava banho e com um prato de comida na mão. Era o único momento que ela tinha.
Não existia PróUni ou qualquer bolsa. Dinheiro da passagem contado. E lembro que meu pai trabalhava como segurança em uma loja de discos. Um salário mínimo de ordenado para completar a aposentadoria de um salário mínimo.
Todos os dias à noite ele me dava cinco reais. Para tomar um lanche. Eu não comia. Guardava o dinheiro e todos os meses comprava um livro na Livraria Papirus, ao lado da padaria Orly. Oriundo da escola pública, reconhecia minhas limitações de formação em relação aos meus amigos de sala. Suor, sacrifício, lágrimas. E o triunfo final. Me formei. Jornalista. Dezembro de 1994. Na sequência, dona Ester fez idêntico esquema com minha irmã. Tenho orgulho de ser filho de quem sou. Tive uma mãe batalhadora, lutadora e um pai que respirava retidão e honestidade. Que se estivesse vivo não aprovaria qualquer gesto meu em direção a capitulação.
Se você chegou até aqui, tem o direito de amarrar as pontas desta história. Diante do sacrifício feito por meus pais, você acha que tenho direito de rasgar toda esta história, este legado (olha a palavra!) e me entregar ao jornalismo fácil e de entretenimento? Ou seja, esquecer o que aprendi com tanto esforço e trair aquilo que fez os meus pais por este que vos escreve? Não dá. Sem acordo.
Tenho direito de rasgar meu diploma e me curvar perante os poderosos, sejam pontepretanos ou bugrinos e trair tudo aquilo que me foi ensinado em sala de aula e na minha sala?
Não ganho dinheiro? Não sou rico? Recebo o desprezo em troca por vezes de muitos integrantes da minha própria categoria? Dirigentes me ameaçam e tentam me encurralar? De imediato, surge na mente os rostos de Elias Aredes e Ester Pompêo. Eu não tenho direito de trai-los. Não posso decepcioná-los, seja qual for o lugar. Dinheiro, poder, status, fama. Nada substitui o elo formado com aqueles que nos colocaram no mundo.
Quando escrevo aqui, quando fiscalizo e exerço minha função é como se cada letra, silaba, símbolo fosse o reflexo de cada gota de sangue que me levou a ser quem sou. Elias Aredes Junior. O Juninho, o Aredes, o Polêmico. Também o esposo, o irmão, o tio babão de um sobrinho adolescente, o sobrinho do Chicão e do Nabal, o primo de dezenas de Aredes espalhados pelo Brasil. Não temos posses, riqueza e nem somos milionários. Temos na alma as dores de quem já foi humilhado as vezes por não ter dinheiro.
Aredes é gente digna. Nobre. Decente. Guerreira. Que pode até um dia cair. Mas ficará em pé. Porque não há dinheiro que pague saber que você cumpre e honra aquilo que prometeu aos seus pais. Não tem preço.
(Elias Aredes Junior)
Adendo: a foto que ilustra o artigo é do primeiro livro que adquiri por volta de junho ou julho de 1991. Tinha dificuldades em sala de aula e fui atrás de um complemento. Um pouco do que sei está neste livro