O dia começou radiante para Severino. Feliz porque viu sua Macaca empatar com o Santos. Pobre, sem recursos e com família numerosa, não imaginava retornar tão cedo ao Majestoso. Fez tudo que podia com o dinheiro: pagou os ingressos para ele e os dois filhos e adquiriu uma latinha de cerveja para dividir entre os três. Pouca importava a dificuldade. O dia era de festa. Nem se importava em cumprir no dia seguinte ao feriado a escala de faxineiro em uma universidade importante de Campinas.
Às 07h da manhã estava a postos. Com o balde, vassoura e os produtos de limpeza. O corredor frio, feito com piso na cor bege emitia um clima tenso. Ninguém ao redor. Tudo deveria estar nos trinques para o retorno das aulas na segunda-feira. Não reclamava.
Após pegar um dos cartões que viabilizava a entrada na sala de aula, o ritual era idêntico: remexia nas cadeiras, tirava o pó das mesas dos professores e checava o estado de limpeza da aparelhagem multimídia. Ritual reprisado nas 16 salas de aula do edifício.
Existia a última sala. Último andar. Algo diferente no roteiro. Estava entreaberta. Desajeitado e tímido, Severino entrou na ponta dos pés. Literalmente. Deparou-se com uma cena de ficção científica: um canto iluminado, uma mesa de madeira inclinada e uma cadeira cheia de parafernálias no lado esquerdo. Vazia.. Debruçado sobre a mesa, um homem, curvado, em um jaleco que não permitia a distinção da cor.
O medo foi deixado de lado e Severino, com um sotaque mineiro carregado– nasceu em Governador Valadares – arriscou:
-Oi, posso entrar?- disse em voz mais baixa que o habitual…
Não adiantou. Em um décimo de segundo, aquela esfinge colocada de costas manifestou-se por intermédio de um grito, mistura de pânico e pavor. Ou tudo junto:
– Aaaaaiiiii!!!! Quem te autorizou a entrar sem avisar!!!
– A porta estava aberta e eu preciso trabalhar- rebateu Severino, ágil em dar dois passos atrás para não sofrer algum arranhão ou reação intempestiva.
– Trabalho? Trampo? Quer me enganar? Tem emenda de feriado na universidade toda… Arruma outra desculpa- questionou o interlocutor, negro, de óculos redondos, de aro branco e um crucifixo no peito…
– Ei doutor não estou de sacanagem não…Tô na hora extra. Desculpe, eu deixo o senhor em paz e depois falo para chefia.
– Calma calma… Peço desculpas. Fui mal. Deixe me apresentar. Meu nome é Marcelo Claudio Cardoso. Sou professor e cientista aqui na Universidade – disse.
– E o meu é Severino! Ao seu dispor patrão…
Após a quebra de formalidades, o faxineiro sentiu-se a vontade para ousadias.
– Nossa doutor, quanto fio espalhado por aqui…Precisa disso tudo ?
Um sorriso com leve mexer de lábios foi o suficiente para o doutor Marcelo Cardoso contar a sua história. Tem 39 anos. Nasceu em Bauru, interior de São Paulo. Nutria interesse por física, química e tudo que envolvesse a quebra de barreiras. Veio para Campinas por acreditar que seria compreendido. Passou em primeiro lugar no vestibular com 17 anos, fez a universidade e tirou notas com tranquilidade. O mestrado e o doutorado se transformaram em formalidades.
Olhos arregalados, Severino mostrou espanto com tamanho talento. Teve compaixão ao ouvir o restante da história:
– Hoje estou renegado. Ninguém presta atenção naquilo que digo. Alguns me acham louco. Não acreditam na invenção que formulo há 20 anos. Estou na fase de ajustes. Só preciso tomar coragem para fazer o teste final…
– O que é doutor?
– Promete que não vai dar risada?-suplicou a figura de jaleco.
– Está louco? O que um faxineiro poderá contestar de um gênio?
– Ok. Seguinte…Está cadeira aqui do lado, cheia de fios é uma máquina do tempo…
Severino coçou a cabeça. Ficou em dúvida, reticente. Parecia história para boi dormir. Antes que abrisse a boca, o cientista continuou sua explicação:
– Tem um painel aqui que eu posso ajustar para a pessoa voltar no tempo no local, dia e na hora que desejar. Só tem um problema: ao chegar ao local de destino, pelos meus cálculos, o retorno é automático após cinco horas. Nem um minuto a mais ou menos. E também não tenho certeza se a maquina é confiável…- explicou o cientista
– É, doutor, esses negócios de laboratório são complicados…
– Bem, a não ser que…- Marcelo virou os olhos na direção do faxineiro e já com planos mirabolantes…
– Doutor, nem inventa. Eu não vou sentar neste troço não- retrucou o faxineiro…
– Por que o medo? Imagine a possibilidade infinita de visitar tempos passados e modificar até aquilo que lhe trouxe tristeza, mágoa…Rapaz, não perca a oportunidade! E a chance de sua vida! E da minha também! Posso ser reconhecido pelo mundo acadêmico por algo relevante, capaz de alterar os destinos da humanidade.
Reticente, Severino tinha a mente perturbada, no fundo ávida por mudar de ideia.
– Como é que funciona essa bagaça?- indagou o curioso faxineiro.
– Simples. Você senta aqui e eu te amarro junto à cadeira. No braço esquerdo existe um painel digital para marcar a data de chegada ao tempo do passado desejado. E a partir da hora de saída conta-se cinco horas. Automaticamente, a máquina voltará para cá. Com ou sem passageiro. Bem vamos deixar de enrolação. Qual a data que você deseja e qual a localização?
Severino sentou pela primeira vez na engenhoca e disparou a data sonhada:
– Então põe aí doutor: 13 de outubro de 1977 às 19 horas. E como local o estádio do Morumbi
O cientista foi contaminado por entusiasmo:
– Olha só…Quer ver in loco a final do Campeonato Paulista de 1977…Também sou corinthiano. Tenho 39 anos. Nasci no ano seguinte ao da conquista. Bem que gostaria de voltar…
– Xi, o senhor está enganado. Eu sou pontepretano. Eu quero é consertar a sacanagem feita com a minha Macaquinha…
Outrora ponderado, centrado e cordado, Marcelo perdeu o prumo. O futebol e especialmente o seu Corinthians eram temas sagrados. Não imaginava que seu trabalho poderia prejudicar a equipe do coração.
– Severino, você acha mesmo que vou permitir uma atrocidade dessas? Que você use minha máquina do tempo para tirar um título do Timão? Só se eu estiver louco!
– Bem, então vou voltar para o meu serviço. Foi um prazer lhe conhecer e pode procurar outra pessoa…
Sem pensar duas vezes, Severino levantou da cadeira, recolheu o balde, vassouras, materiais de limpeza e outros apetrechos que sequer chegou a usar devido ao bate papo imprevisto.
Ao ver tudo no corredor e ao postar a mão na maçaneta, Severino mal sabia que seus ouvidos seriam invadidos por um apelo derradeiro:
– OK! Ok! Eu aceito! Pode voltar ao dia do jogo. Agora se lembre: se quiser interferir nos acontecimentos você tem apenas cinco horas. Nem um minuto a mais ou menos. Se perder a noção do tempo, não me responsabilizo pelas consequências- alertou afoito para verificar se sua ideia teria validade.
– Vamos lá então, doutor… Comece logo que eu quero melhorar minha vida e a do senhor também.
Severino apressou-se em sentar em definitivo. Ficou envolvido na parafernália desenvolvida anos e anos. Quando tudo ficou pronto, só teve tempo de presenciar a sala com as luzes acesas e apagadas várias vezes. Ficou em transe. Parecia dormir em um sono profundo.
Quando acordou, tudo modificado. Estava com a cadeira dentro de uma pequena guarita localizada nas proximidades do estádio do Morumbi, na avenida Giovani Bronchi. Ficou cético por alguns minutos. Severino só ficou convencido da viagem ao ano de 1977 e na data escolhida quando olhou nas ruas: Chevettes, Brasílias, Fuscas e Opalas aos montes. Ônibus antigos, daqueles que só via em páginas do Facebook.
Um leve olhar e vislumbrou diante de si as calçadas lotadas de corinthianos, de bandeira na mão, todos em uma única direção. O Morumbi seria o palco da redenção, acreditavam todos.
Olhou no relógio. Já eram 19h10. Não podia perder tempo. Se fosse aprontar algo, tinha que ser de imediato. Com o uniforme cinza chumbo de faxineiro disparou em direção ao portão principal do Morumbi. Tomou o cuidado de tirar o símbolo da empresa pela qual era contratada. Sabia que não era ali a entrada do ônibus da Ponte Preta. Perguntou para 10, 15 pessoas, até que um ambulante local deu a dica:
– Anda mais uns 500 metros próximo ao estádio. Alias, acho que eles estão para chegar. Coitados. Não tem chance nenhuma! Hoje é coringão na cabeça!
Severino desprezou o palpite inoportuno. Correu para o portão em que desembarcaria os pontepretanos. Como o uniforme cinza no corpo, Severino explicou ao segurança postado na frente do portão para os vistantes que estava escalado para limpar dependências do estádio logo após a partida.
Autorização concedida dirigiu-se ao banheiro próximo do vestiário visitante. Pensava em alguma maneira de mudar o destino daquela final trágica. O banheiro vazio lhe permitiu verificar a gaveta com os materiais de limpeza e buscar algo que pudesse ser útil. Achou. Um pequeno frasco de éter e um pano seco. Molhou o pano com o material e esperou a hora do bote. Precisava contar com a sorte. Teve.
Quando faltavam 45 minutos para a decisão, o centroavante titular da Macaca mudou a rotina e preferiu utilizar o banheiro fora do vestiário. Era a chance de Severino. Ficou atrás da porta. A chegada do atacante fez o pacato faxineiro fugir da normalidade: por trás, deu uma gravata no atacante, enfiou o pano encharcado de éter no nariz do camisa 9. Desmaio imediato. Agarrou o corpo inerte e entrou em um dos quatro boxes do banheiro. Tomou o cuidado de colocar o jogador ainda desmaiado de uma maneira que não permitisse uma descoberta indesejada. Passados 20 minutos, o burburinho explodiu no vestiário da Ponte Preta. Dirigentes, integrantes da comissão técnica, seguranças e até jogadores foram procurar o paradeiro do centroavante titular.
Nada. Nenhum sinal. O diretor de futebol chega afoito ao banheiro. Vislumbra a porta trancada. Dá vários socos no batente e grita desesperadamente:
– Rui! Rui! Responde! Você está aí? Não brinque com coisa séria, pô! O jogo vai começar cacete!
Uma pequena fresta é aberta. Era Severino. Com voz firme e um tom acima do normal disparou:
– O da gravata…Dá um tempo…Nem fazer um cocô a gente tem tranquilidade! Poxa, dá um tempo meu! ?- disparou.
– Me desculpe. Pensei que era outra pessoa- afirmou o diretor de futebol, em retirada para continuar a caçada.
Como faltavam poucos minutos, o treinador não quis esperar. Escalou Parraga. Ao passarem pelo corredor que dava acesso ao túnel do estádio e era próximo do banheiro, Severino ouviu música para seus ouvidos:
– Poxa, o Rui deixou a gente na mão…Caramba, que sacanagem… Parraga, não tenha medo! É agora ou nunca! Vamos derrota-los! – identificou Severino: Era o camisa 10. A voz presente nos programas de rádio não devia ter mudado. No espaço diminuto do banheiro, Severino sorria. Existia uma chance de mudar a história.
Começa a final. Nervosa, catimbada, sem grandes emoções. O juiz trabalhava tranquilo. Nenhum jogador encontrava-se fora do normal. O segundo tempo rola e aos 30min acontece uma falta. O camisa 10 cobra e coloca na gaveta. Gol da Ponte. No terceiro jogo. Na grande final. O silêncio no Morumbi e a comemoração enlouquecida, mas em volume baixo era a prova do final feliz.
Apito final, Ponte Preta campeã. Dentro de um espaço exíguo, Severino, ao lado de um atleta desmaiado, comemorava feito louco. Chorava, vibrava e lembrava dos anos e anos de gozações. Não precisava sofrer. A sua Ponte Preta chegava lá.
A alegria durou pouco. Ele lembrou: tinha 30 minutos para sentar na cadeira. Voltar ao presente alterado pelas suas mãos. Deixou o atleta ainda zonzo dentro do banheiro e correu pelos corredores do Morumbi em direção a guarita na Giovani Bronchi. Extasiado, entorpecido. Não acreditava no que via. Corinthianos em passos lentos, cabisbaixos após novo revés.
Admirava aquela cena. Parecia sonho. Não era. Tinha as suas digitais. Quando sentou na cadeira, o coração saltitava. Nem percebeu quando reviveu tudo. A cabeça dormente, o sono profundo. Efeito da explosão gerada pela cadeira do tempo.
Ao voltar, Severino tinha Marcelo no aguardo. Perto da meia noite.
– Nem precisa me responder Severino. A experiência deu certo. Até demais. Olha aqui no celular.
A manchete de um portal dedicado às notícias de Ponte Preta e Guarani não deixava dúvidas:
“PONTE PRETA CELEBRA HOJE QUARENTA ANOS DA CONQUISTA DO PRIMEIRO TÍTULO PAULISTA”.
Na reportagem, a declaração do centroavante titular e o grande mistério que permanece após 40 anos: por que ele não jogou a final. “Rapaz, eu só não lembro que fui no banheiro e quando acordei vi meus companheiros em festa. Não entendi nada. Pouco importa. Interessa saber é que esse título entrou para a história”, disse o camisa 9 titular da ocasião.
Para Severino, o mundo poderia acabar. Ao viajar no tempo, deixou no presente uma Ponte Preta gigante. O seu toque mágico transformou sua Macaca em algo incomparável. No futebol e no seu coração. Para sempre.
(crônica de ficção de Elias Aredes Junior)