O apartamento é de luxo. Quartos impecáveis. Tapetes espalhados na sala e a mesa recheada de pratos, panelas e talheres. Tinha tudo para ser uma noite inesquecível. Natal. Os meses de audiências, casos intrincados e decisões em cima do código penal davam um descanso. Este seria o mundo ideal. Não existia. Tarcísio está alterado. Bêbado. Vestia uma bermuda branca, camisa azul, relógio de ouro no pulso da mão esquerda e na mão direita tinha uma garrafa. Metade da garrafa era passado.
Estava incontrolável. Era capaz de qualquer atitude. Qualquer uma. Com quem quer que fosse. Nestas ocasiões, não existia festa. Operação padrão era iniciada naquele apartamento. Questão de sobrevivência.
A esposa, Vanda, tentava controlá-lo no centro da sala, ao lado da mesa decorada com presentes. Os filhos, Danilo e Daniel, se dirigiram ao quarto. Trancaram a porta e esperavam a tempestade passar. O ódio não cessava. Tarcísio gritava, insultava e em um ímpeto colocou marcas no rosto de Vanda. Suas mãos, em um piscar de olhos, transformaram-se em garras dispostas a dilacerar os braços da esposa casada há 20 anos. O desespero bateu à porta. Nunca viu o marido assim.
Tarcísio conheceu Vanda nos corredores da universidade de direito. A fala mansa, o jeito sedutor e roupa bem passada faziam qualquer intervalo transformar-se em sonhos para aquela menina mirrada e de cabelo curto. A formatura de ambos significou a renúncia de Vanda a uma vida profissional plena.
Abraçou o papel de dona de casa enquanto Tarcísio adotou uma obsessão infinita pelo sucesso. Petições, audiências, liminares, contestação de decisões dos juízes. Era a rotina deste advogado consagrado. Trabalhar por 14, 15 horas por dia virou rotina. Rotina que passou a não suportar. Vislumbrou a bebida como válvula de escape para avalanche de tarefas tão massacrantes.
Quando bebia, Tarcísio perdia o controle. Já quebrou móveis, aprontou escândalos e não era incomum aquele homem de 1,90 metro e sem cabelo e pele clara pegar o carro e sair em desabalada carreira pelas ruas da Vila Marieta e do Parque Prado. Sob o efeito do álcool, Campinas era um autódromo. Era abrir a garrafa, assumir o volante e correr os riscos. Vanda não suportava viver aquilo. Queria que Tarcísio abrisse mão da busca pelo reconhecimento. Sonhava que ele fosse um homem normal, que gostasse de futebol e zelasse pelos amigos…Taí…Tinha poucos… Pouquíssimos. Não tinha assunto. Não apreciava esportes. Seja para praticá-los ou assisti-los.
Para ele, era incompreensível que os filhos tenham agarrado a modalidade com tanta paixão. Danilo, o mais velho era pontepretano. Daniel, bugrino. Sua esposa era a companhia das crias quando a tabela dos campeonatos marcava uma partida decisiva. Vanda não torcia para nenhum dos dois, mas não trocava a felicidade gerada e o brilho nos olhos de seus meninos gerados pelas vitórias. Em semana de dérbi, cada irmão já sabia: como o jogo é de torcida única, a mãe acompanhava o torcedor mandante e o visitante desalojado permanecia em casa, trancado no quarto, de olho nas redes sociais, no per pay view e em tudo aquilo capaz de fornecer os lances do jogo minuto a minuto.
O futebol, o dérbi e as arquibancadas ensinaram Vanda a assimilar a exata noção de tempo. Naquela véspera de natal, cada segundo era precioso. Não para celebrar a vinda do menino jesus e sim para fugir daquele monstro que, sóbrio, apresentava-se como marido. Em ato de desespero, Vanda, após ser agredida, em um ato reflexo, correu para o quarto em que os meninos já estavam guardados e seguros.
Ela correu, fechou a porta e ficou de frente para a porta. Girou a chave, e jogou o corpo contra o bloco de madeira com maçaneta. Enquanto isso, Tarcísio esmurrava e dava urros com a promessa de que desejava terminar o que tinha começado. “Não adianta fugir. Uma hora você terá que sair daí, Vanda. Não se esconda”, decretou Tarcísio, com uma voz enrolada e cheia de uma determinação cambaleante e sem firmeza nas pernas.
Minutos depois, Vanda escutou a porta principal sendo fechada com violência. Poderia abrir a porta e respirar. Mudou de ideia. Com a chave na mão, Vanda olhou para o fundo do quarto. A cena lhe comoveu. No fundo daquele espaço exíguo, Danilo e Daniel estavam com as roupas escolhidas para a noite de Natal, calças jeans e camisas brancas. Estavam amarrotadas. O desespero fez com que ficassem agachados, na junção da parede e com as camisas dos clubes de coração colados no corpo, como se fossem escudos. Parecia uma proteção da onda de terror imposto naquele apartamento cheio de luxo e lotado de ódio. Não poderia ser assim. Não podia assim. Vanda correu ao encontro daqueles pré adolescentes com o pavor estampado no rosto. Um abraço misturado com lágrimas e suspiros dominou o ambiente.
De súbito, aquela mulher cansada e exaurida de tantas tempestades, passou a olhar aquelas camisas como um bálsamo de esperança.
Percebeu naquele espiral de tormento, tristeza, decepção, frustração e destruição, a alegria vivida nos estádios campineiros. Era no Brinco de Ouro que via Daniel sorrir. Era no Majestoso que Danilo tinha amigos, ficava à vontade e mais lhe abraçava. Por um instante, Vanda percebeu que duas camisas, duas paixões, poderiam lhe dar uma nova chance, uma nova forma de viver. Ela não tinha noção do que estava por vir.
(Texto de ficção escrito por Elias Aredes Junior- foto de Nayra Halm / Staff Images Woman / CBF)
Ps: O texto continua amanhã, dia 27 de dezembro