O começo foi duro. Nova vida, novos amigos, ambiente diferente daquele que conviveu por quase 50 anos. Carlos Alberto Silva é novo na área. Levou na mente as recordações do passado, os título obtidos por clubes, os amigos que fez no mundo da bola.
Era preciso recomeçar de novo. O céu era exatamente como pensava. A Bíblia Sagrada não errou em nenhum detalhe. Isso não extermina as dificuldades.
Tem alguns amigos. O principal chama-se Giba. Este não teve obstáculos para viver a nova etapa. Já tinha um caráter e um comportamento que lhe assemelhava a um anjo. Puro, sem maldade. Carlos Alberto Silva já gostava dele no plano terreno. Virou seu confidente.
Especificamente naquele dia Giba parecia triste, acabrunhado, sem rumo. Com tato e jeito, Carlos Alberto encostou para um bate papo:
– Ei Giba, o que passa? Por que essa cara triste? – disse o novo morador do céu para em seguida emendar-Você está alegre e alto astral todo o tempo. O que acontece?- perguntou.
Giba não perdeu o cacoete do tempo de jogador. Um comportamento retraído, arredio e sem explicação em algumas vezes. Carlos Alberto não desistiu. Queria saber o drama vivido.
– Fala homem! Desembucha e abre essa matraca…
Giba olhou para os lados, viu que estavam a sós, sentou na calçada feita de ouro e disse em tom de voz baixo, em tom de lamento.
– De vez em quando eu dou uma olhada para ver o calendário lá da terra. Até para ver quanto tempo se passou. E vi que hoje são completados três anos de minha estadia aqui no céu.
A revelação deixou Carlos Alberto Silva atordoado. Até por saber da serenidade do parceiro.
– Ok, eu entendo que deixamos muita gente. Familiares que nos amavam. E nos amam. Deixamos obras por fazer, sonhos para se transformarem em realidade. Mas em cinco meses que estou aqui eu digo: estamos muito melhores do que no passado. E quem lamenta nossa ausência hoje entenderá no futuro o que sentimos..
– Eu sei, eu sei, aqui é muito bom. Não há parâmetro com o passado. O problema é que vi a data e lembrei de outra coisa
– Do que?
– Melhor não falar. Você não vai gostar professor- disse Giba, sem esquecer a reverência dos tempos do futebol.
– Se você não falar eu jamais vou saber- retrucou o recém chegado.
– Então…É o Guarani
– Hã? O que tem o Guarani? O que o clube te fez? Pode falar. Posso até ficar decepcionado, mas vou compreender…
Como se estivesse pronto a mergulhar em um rio profundo, Giba concentra-se e começa a falar. E parecia que não desejava parar:
– O Guarani me transformou em homem e cidadão. Entrei ali menino e sai um profissional . Nunca deixei de amar e respeitar a instituição. Quando entrei para a carreira de treinador, em todas as vezes que fui convidado nunca recusei. Treinar o Guarani era mais do que uma tarefa profissional. Era uma missão, um sacerdócio…
– Eu te entendo perfeitamente- complementou Carlos Alberto em das escassas brechas permitidas pelo angustiado amigo.
– E foi ali professor que entendi o sentido da palavra milagre. Plenamente.
– Como esquecer o que você fez em 2011?- disse Carlos Alberto.
– Pois é. Eu assumi um time com salários atrasados, brigas políticas diversas, jogadores com vontade de ir embora. Estava sozinho. Alias, éramos eu, Deus e a Comissão Técnica. Sabe o que é convencer um jogador a correr a atrás de uma bola, a lutar por uma vitória e o filho com fome e as contas atrasadas? Consegue dimensionar o sofrimento de um funcionário que ganha salário mínimo e está sem dinheiro para pegar uma condução?
– Eu sinceramente não sei como você conseguiu.
– Nem eu. E lutei por tudo aquilo por acreditar que o Guarani poderia avançar a partir daquele estágio. Ou seja, estruturar-se e buscar um retorno a divisão de elite do Brasileirão e continuar no Campeonato Paulista. Deu tudo errado. Enquanto estávamos na terra, conseguiram deixar o nosso amado Guarani na Série A-2 e na terceira divisão. Desastre atrás de desastre.
– E por que falas tudo isso?- questionou Carlos Alberto.
– Porque apesar de testemunhar daqui o acesso do ano passado, o sentimento de tristeza e frustração não passa. Parece que as pessoas bem intencionadas tem como destino enxugar gelo para o Guarani não sair do lugar. – então Carlos Alberto Silva tentou interromper o discurso e foi interpelado por Giba.
– Calma eu vou terminar…
– Tudo bem
– Seguinte: quando os anjos permitem dar uma espiadinha lá embaixo eu não resisto e busco informações do Guarani. Fiquei muito feliz ao ver que o Vadão está lá. E na Série B. É gente como a gente. Tem história no clube. Respeita a instituição. E se o esforço for em vão como o meu? Se ele conseguir o acesso e no ano seguinte o time cair de novo? Do que adiantou?- pergunta aflito Giba, já com os olhos marejados e com a fronte cabisbaixa.
Ao constatar o final do desabafo, Carlos Alberto Silva sacoleja a túnica branca e encarna a ênfase das preleções dos tempos de treinador:
– Giba, eu entendo sua decepção. Pense no meu lado. Eu fui campeão brasileiro, semifinalista de Libertadores, fiz boas campanhas mas também senti o dissabor de um rebaixamento. Tem noção do que é isso? Depois que me afastei, muitas vezes fiquei triste e até chorei com os rebaixamentos. Não acreditava o estado em que deixaram o Guarani. Não aceitava que a vaidade destruísse uma paixão tão bonita e cativante…
– E daí?- perguntou Giba, impaciente.
– E daí meu amigo que você não deve se martirizar por isso. A torcida do Guarani, seja aqui no céu ou na terra sabe o quanto amamos e respeitamos o clube. E que se o Guarani não está no estágio adequado não é culpa nossa. Veja, muitos me consideram um ídolo, querem até fazer um busto em minha homenagem. Você acha realmente que a torcida vai nos colocar no mesmo balaio que os outros? Não vai mesmo…
– Mas você o seu Zé (Duarte) ainda tem títulos para exibir…E eu?
– Você um herói da história do Guarani. Conseguiu sustentar o time na Série B apesar de imensas dificuldades. Os dirigentes te sacanearam, lhe enganaram, demoraram para quitar seus direitos e você nunca jamais falou um “A”. Pelo contrário. Você acha realmente que a torcida te esqueceu? Eu duvido. Giba, para o torcedor que está lá na terra você é tão campeão quanto eu. Por favor, tire essa cara emburrada e vamos andar e trocar algumas ideias como nossos amigos. Aqui não é lugar para pensamentos ruins. Só coisas boas…
– É verdade. Tem razão professor- disse Giba, já com o semblante mudado e pronto para desfrutar das coisas boas do céu.
– Tive uma ideia. Vamos dar um pulo na rua do lado. O Zé Duarte está por lá, o Diogo, que jogou e trabalhou no Guarani, o Ricardo Chuffi, o Michel Abib. Vamos recordar o Guarani que vale a pena. Quem sabe a gente inspire os meninos que estão lá embaixo…
– Vamos nessa.
Sorridentes e felizes, Giba e Carlos Alberto Silva passaram a caminhar pelas ruas de ouro do céu. Sabendo que seus corações são alviverdes. Por que o amor nunca morre. Só renova.
(Texto fictício de autoria de Elias Aredes Junior- Uma homenagem ao ex-técnico Giba, que faleceu há 3 anos)