A tragédia com a Chapecoense exibe uma nova maneira do torcedor encarar os seus rivais. Campinas não pode ficar fora dessa!

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Tocar em alguns assuntos é espinhoso. É preciso encontrar-se preparado para reações coléricas. Só que a opinião pública precisa ser provocada e suscitar o debate, lutar pela evolução. Não existe urgência mais escancarada do que no futebol.

Preconceitos são jogados a partir das arquibancadas, em programas esportivos e até em mentes que deveriam ser esclarecidas.  A troca de ideias é rasa, superficial e sem profundidade. O mais grave: coloca mais preconceito na fogueira. Em Campinas, não é diferente. Apesar de encontrarmos há três anos sem o principal clássico da cidade, a rivalidade continua à flor da pele. Uma derrota de lado a lado e as brincadeiras e provocações aparecem. Quando enfocam a parte esportiva de cada um e de maneira saudável, não há problema nenhum. Faz parte do jogo e da rivalidade sadia.

Afinal, qualquer campineiro minimamente informado reconhece que o Guarani terá que carregar a mácula de nove rebaixamentos e os desmandos perpetuados por dirigentes incompetentes.

Em contrapartida, a Ponte Preta precisa conviver com o fato de que ainda não levantou uma taça em campeonato de âmbito nacional ou de primeira divisão. Sim, porque a Macaca é campeã da divisão de acesso de 1969 e tal fato erroneamente foi esquecido por muitos . Os fatos citados aqui em relação a pontepretanos e bugrinos são dolorosos para ambos, mas faz parte do cardápio que alimenta de modo correto o antagonismo separado apenas pela Avenida Ayrton Senna.

Duro é quando a brincadeira vira ofensa. De lado a lado. Quando nichos específicos da população, afetados por anos e anos de discriminação e preconceito ainda são utilizados como cobaias. São feridas que precisam ser debatidas especialmente neste período duro criado a partir da tragédia com a Chapecoense. Subitamente, descobrimos que somos capazes de olhar ao outro não como inimigo, somente como adversários. Sem ofensas descabidas. A manifestação das torcidas de São Paulo, Palmeiras e Corinthians em frente ao Pacaembu, em homenagem a Chapecoense provou de que é possível construir um novo mundo.

Racismo não pode ser motivo de chacota

Para isso virar realidade, algumas feridas precisam ser tocadas. Não, a torcida do Guarani não é racista. Tanto que tem na sua galeria de heróis um presidente responsável pela formação do patrimônio do Guarani e que era negro – Jaime Silva- e um jogador de alto quilate técnico chamado Jorge Mendonça. Sem contar o ponta esquerda João Paulo, o zagueiro Amaral, o goleiro Neneca…Atletas reconhecidos pela torcida como fundamentais para a construção de uma história cheia de glórias.

Dito isso, deveria ser salutar a torcida bugrina, democrática e capaz de abrigar todas as classes sociais deixar de utilizar a referência de “Xita” de maneira pejorativa para ofender o rival. Sim, a Macaca surgiu como mascote da Ponte Preta como uma forma de revidar os atos racistas que sofria em campos de todo o Brasil por ser o primeiro clube a admitir jogadores negros. Venceu o racismo com criatividade. Tal fato aconteceu no Século 20. Com tanta informação a disposição, o que impede de uma parte (uma parte, não é a maioria) ainda utilizar termos que remetem a um passado que não traz orgulho?

Penso que os obstáculos esportivos enfrentados pela Alvinegra são mais do que suficientes para provocar e suscitar polêmica. Outros motivos? A marca da própria cidade de Campinas, uma das últimas a abolir a escravidão e que até hoje tem dificuldades em admitir e encarar o problema.

Quadro preocupante

A própria realidade do Brasil deveria servir como estado de alerta. Segundo dados da ONU, das 16,2 milhões de pessoas vivendo em extrema pobreza no país, 70,8% deles são afro-brasileiros. Os salários médios dos negros no Brasil são 2,4 vezes mais baixos que o dos brancos e 80% dos analfabetos brasileiros são negros. Pergunto: qual a graça disso? Nenhuma. Repito: o Guarani hoje é um clube de amplitude e democrático nas arquibancadas. Deveria dar um passo a frente e exterminar esta nomenclatura de seu rol de gozações ao rival.

Homofobia não tem graça nenhuma

Engana-se quem imagina a torcida da Ponte Preta imune a equívocos. Nas arquibancadas ou nas ruas da cidade, os torcedores da Alvinegra se referem ao torcedor com uma conotação depreciativa em relação a homossexualidade. Quem nunca andou pelas ruas de Campinas e nunca viu os pontepretanos se referirem aos bugrinos como as “meninas”? Isso sem contar os cantos que reslavam na homofobia. Talvez muitos pontepretanos não tenham noção de como os homossexuais são agredidos, perseguidos e vítimas de violência no Brasil.

Alguns dados para refletir: em 2012, os poderes públicos (municipal, estadual e federal) receberam 3084 denúncias contra LGBTTT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) e em 2013 o patamar chegou a 1695. No ano passado, foram registrados 318 assassinatos contra este nicho da população. De acordo com dados do governo, em 73% dos casos as vítimas de quaisquer atos de violência são homens e 40% são enquadrados como negros ou pardos, de acordo com o documento publicado em 2014. Indagação: o que tem de engraçado nisso? Nada, nada, nada.

Conhecida como uma agremiação aberta a todas as classes sociais e pioneira na luta contra o racismo no Brasil, a Ponte Preta poderia e deveria encampar também a batalha contra a homofobia. Seguir o exemplo de um grupo de torcedores do Palmeiras, que iniciaram uma campanha de exterminio do grito “Bicha”, quando o goleiro adversário bate o tiro de meta no Allianz Parque. O brado que tentarão colocar em prática é o de “Porco”, o símbolo do clube. Deu certo e muitos clubes seguiram para não serem punidos pela Fifa.

Nada de politicamente correto. O foco é a rivalidade sadia

Que ninguém pense este texto ser um compêndio de defesa do politicamente correto. Nada disso. A gozação, a brincadeira e o sarro inteligente se constituem na essência do futebol. É por entender que a maioria de bugrinos e pontepretanos são inteligentes, democráticos e sagazes que propus este debate.

Campinas é conhecida sim por seu provincianismo mas também por sua capacidade de superar suas limitações e apresentar-se como vanguarda e propensa a ditar tendências e novos comportamentos. Que bugrinos e pontepretanos entendam que xingamentos e ofensas de conotação racista e homofóbica não colaboram em nada com a rivalidade. Pelo contrário. Colocam um combustível letal no motor que desejamos paralisar por toda a eternidade: a violência.

(análise, dados e texto de autoria de Elias Aredes Junior)