Artigo Ficção: Sérgio Carnielli e o tira teima com Moisés Lucarelli

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Salão Nobre lotado. Vozes e gestos efusivos. Dia de reunião do Conselho Deliberativo. O homem poderoso está acuado. Em canto, está nervoso e desolado. Tudo parece escapar por entre os dedos. O império planejado parece ruir diante de seus olhos. Os dias em que era ovacionado nas arquibancadas ficaram no passado. Tudo virou magoa, decepção, ressentimento. Não há saída.

Atônito, perdido e sem rumo, o senhor de 70 anos, corpo curvado, lábios finos e cabelos brancos rompe as escadas do velho estádio. Não liga para seguranças, puxa-sacos e assessores. Quer ficar sozinho.

Dá passos lentos. Quase em câmera lenta. Ultrapassa a pequena capela, rompe a porta e com as mãos para trás está decidido andar ao redor do alambrado. Um instante só dele. De mais ninguém.

O escuro dá o tom do cenário. Tudo é  infinito. O calvário particular reserva a surpresa:

– Eu sabia que não iria dar certo. Só não você não viu.

Corpo parado, inerte. Susto imediato. De onde veio aquela voz? O que aconteceu?

– Vanderlei, é você? Pare de brincadeira. Me deixa em paz…- retrucou com a impaciência peculiar dos últimos anos…

– Não culpe os outros. Olhe para o seu ar derrotado. Está prostrado, não quer reagir.

Ao levantar a fronte, não acreditava no que via. O busto colocado na entrada do estádio criava forma, voz, expressões, sentimentos. Só podia estar louco.

– Só pode ser um sonho. Não é verdade—falava em voz alta enquanto no andar de cima, os homens engravatados debatiam asperamente.

– Não está louco coisa nenhuma. Eu é que não aguento mais tanta negligência e incompetência da sua parte.

Verdadeira e ficção ficam misturados. O senhor de cabelos brancos perde o pudor. Olha para a estátua agora em forma de gente com ar desafiador. Não admite contestações. Abriu os olhos. Eles brilhavam. Com ódio. As frases saíam como uma lava de vulcão.

– Era só o que me faltava. A oposição enche o saco, a torcida não me compreende e agora vem você querer me corrigir. Isso não é verdade. Não acredito!Não aceito- decretou.

O rosto no pedestal, com ar professoral inicia a palestra. Sem hora para acabar.

– Talvez esse seja seu problema, sabia!? Só você pode falar. Não escuta ninguém. Não aceita o brilho e o sucesso de ninguém. Não olha ao redor e não detecta o que significa tudo isso aqui…- virou o rosto como um guia turística ao apontar o estádio escuro e imponente.

– Sei sim. Sei que eu salvei isso aqui de fechar as portas…

– Salvou nada meu caro. Deixa lhe dizer uma coisa. Nos últimos 22 anos, desde que chegou aqui, sabe quantas pessoas vieram e choraram do meu lado? Milhares. Sabe quantas pessoas eu vi contar o dinheiro suado para participar de uma caravana ou para pagar o ingresso de um ente querido? Milhares! Perdi as contas. Não cola mais fazer papel de super herói. Os autênticos sofrem, lutam pelo clube sem querer nada em troca.

O italiano parecia desarmado. Não falava. Contraiu o rosto e continuou a acompanhar a resenha inesperada.

– Eu teria todos os motivos para me sentir o maioral. Eu comandei a construção deste estádio. Eu mobilizei milhares e milhares de campineiros para adquirir tijolos e cimentos. Tudo atrás de um sonho. Ajudei a transformar um pedaço de terra em um local de magia, emoção, de esperança infinita. Nunca reivindiquei nada. Eu sei do meu lugar- disse aquele senhor, responsável em transformar aquele busto em palanque para um único eleitor, que insistia em resistir e retrucar:

– Muito bonito e lindo. Pena que tudo isso não seja verdade. Uma derrota e essa turma vai quer me pegar, me destruir. Você não sabe o que diz.

– Sabe por que eles te odeiam? Porque deseja os sonhos só para si. Não reparte, não compartilha. Olhe de novo para isso aqui. Construir uma arena para que? Para aniquilar os corações e sentimentos depositados aqui? Não é humano, não é justo- dizia com voz firme o interlocutor.

Aquele outrora presidente de honra estava desmontado. Chorava como criança. Queria entender o julgamento. Ajoelhou-se de frente ao seu algoz recém-nascido e suplicou:

– Pare com isso! Pare! O que você quer de mim? Eu já dei tudo que podia para esse clube. Dinheiro, times. O que desejas mais?

– Sérgio, eles querem o seu coração. Do que adianta jogar toneladas de moedas de ouro e você ser incapaz de vibrar por um gol? Vale a pena ficar fissurado em vender jogadores e não ser capaz de escorrer lágrimas por um gol perdido, uma derrota dolorida? Eu e os torcedores que sentamos neste templo jamais exigiremos fortunas de ninguém. Só o coração. Volte ao primeiro amor. Relembre o sentimento de ser pontepretano, das festas em vitórias impossíveis e a solidariedade nas derrotas amargas. Desarme-se Sérgio, desarme-se…

Duas mãos erguidas em direção ao céu, lábios trêmulos, o poderoso era a imagem da contrição e do arrependimento. Queria balbuciar alguma coisa, responder o que fosse. Uma interrupção que lhe tirou do transe:

– Ei, Sérgio, o que é isso? Ajoelhado para quê? A capela é ali do lado. Vem, vamos voltar para a reunião – disse o braço direto e diretor financeiro por vários anos.

Parecia ter envelhecido muitos anos. Desconectado de tudo.

– Está bem? Algum problema?- disse o empresário alucinado por números.

– Não, eu só preciso recomeçar. Só isso. Recomeçar.

E ao subir as escadas, aquele senhor sabia: sua história nunca mais seria a mesma. E nem a do clube.

(artigo de ficção de autoria de Elias Aredes Junior)