Porta do elevador aberta. Sóbrio ou fora de si, Tarcísio já estava acostumado com o cenário. O espaço amplo, o piso de porcelanato em cor bege bem claro e um sofá vermelho à direita de quem estava de frente para a saída do apartamento. O ponteiro marcava meia noite. Fogos de artifício em profusão . A cada passo, o outrora advogado respeitado, agora um quase irreversível alcoólatra, sentia-se incomodado com aquele barulho.
Era demais. Tinha a incompreensão da esposa, a distância dos filhos e as amizades interesseiras que não lhe acrescentam nada. Ingredientes que formavam um coquetel de ressentimentos.
Precisava descontar em alguém. Tinha que desabafar e soltar a sua revolta e inconformismo contra o mundo. Decidiu que iria caminhar e vagar pela noite. Sem destino. Rumo incerto. Se ninguém se importava com ele, por que deveria seguir as regras? O que justifica ser um pai de família exemplar, um advogado indestrutível, um vizinho prestativo? Balela. A bebida era o álibi, o argumento para soltar os seus demônios. Vingar-se do mundo por gostar de bebidas caras, apreciar roupas finas…e detestar futebol!.
Não se conformava com a paixão dos filhos. Para ele, aquilo era coisa de gente ralé, desprezível. Tarcisio virou um advogado renomado, juntou montanhas de dinheiro, comprou um apartamento de altíssimo padrão e o que recebeu em troca foi isso? Que seus filhos separassem um ou dois dias da semana para se misturar com gente desqualificada, sem noção de nobreza? Para ele, o futebol era isso: o encontro dos frustrados. A celebração dos derrotados. Mesmo que a cada 90 minutos, um vencedor fosse apurado.
Ele detestava os fanáticos. Ficava inconformado com pessoas adultas, formadas, decidirem ficar falando horas e horas de um jogo, que na prática, é infantil. Ou feito para os desqualificados.
Cambaleante, trôpego, atento para não pisar em falso, Tarcísio chegou a portaria. Seu rosto ficou franzido. Testa enrugada. Não poderia ter tido maior azar. Quem estava na portaria era Miguel.
Alto, negro de pele retinta, cabelo ralo na frente e cheio nos lados, era querido pelos moradores. Os braços longos, as pernas cumpridas eram os trunfos para o sorriso afetuoso, o abraço apertado em qualquer um que passasse pela revista necessária . Sempre pronto. Tinha uma característica peculiar: trabalhava com a camisa da Ponte Preta debaixo do uniforme da empresa terceirizada. Enfrentou resistência quando decidiu levar sua paixão ao peito. Depois todos viram que isso não afetava sua produtividade. Pelo contrário.
Tarcisio parou. Mirou seus olhos na porta de vidro. A alegria de Miguel incomodava. Especialmente por lembrar que ele era responsável por transformar a sua casa em uma arena esportiva. Quando não estava de plantão ou nos feríados, Miguel fazia uma jornada de sete horas. Entrava às 12h e saia às 18h. Os filhos de Tarcísio estudavam em horários diferentes. A perua deixava os rebentos em frente ao condomínio.
Danilo estudava pela manhã. Saía por volta das 11h45. Chegava a tempo de ver Miguel iniciar a jornada. O garoto não perdia tempo e perguntava pelas notícias da Macaca. “Seo” Miguel era das antigas. Não queria saber de redes sociais, streamings e aplicativos. O seu companheiro era o rádio. Acompanhava todos os programas. Todos. Então, quando Danilo chegava, ele mesmo, Miguel, fazia o boletim da Macaca. Apressado, Daniel aparecia dez minutos antes da perua aparecer às 12h30 para levá-lo ao colégio. Antes, Miguel era o repórter que trazia as notícias do Guarani. E na despedida, sempre o aviso de Miguel:
-Sabadão todo mundo lá hein!?
Daniel e Danilo tinham amigos no Colégio e no condomínio. Mas eram tratados como exóticos. Ou loucos. Com tanta oferta boa, como ficar ligado em dois clubes decadentes, sem apelo e na Série B? Melhor agarrar-se no Real Madrid, Barcelona, Juventus…Ponte Preta e Guarani? Guarani e Ponte Preta? Loucura. Delírio. Daniel e Danilo resistiam. Miguel, o porteiro, era o pilar.
Tarcisio olhou para Miguel com ares de vingança. Vanda, a esposa, comentava com ele, a frase repetida “N” vezes por Miguel. “Todo mundo lá” não cabia aos seus filhos. Eles não eram todo mundo.
Era a hora do acerto de contas. De ir à forra.
Tarcisio abriu a porta da guarita e começou a despejar estultices, apesar do sorriso aberto e receptivo de Miguel:
– Escute bem, seu empregadinho rasteiro, não é porque hoje é noite de natal que você não vai ouvir umas boas. Aliás, algo que deveria ser dito pelo síndico desta espelunca. Pago uma fortuna para ver um porteiro ter intimidade com filho de morador. Por mim, você já estaria fora daqui há muito tempo. Coloque-se no seu lugar, seu porteiro de quinta categoria. Não dirija a palavra aos meus filhos. Eles não são da sua laia…
Miguel não esperava recepção tão ácida. Os olhos marejaram, a boca ficou seca. Pensou em responder, mas o instinto de sobrevivência falou alto. Dentro de si, ligou o piloto automático e deixou o bêbado com ares de milionário a falar. Ou soltar impropérios pelo ar.
-A sua tática é boa, reconheço. Usa essa porcaria de futebol para engatar intimidades com meus filhos. Esse troço de Ponte Preta e Guarani só serviu para tirá-los do rumo dos estudos. Você querer ser feito de otário é problema seu. Agora, os meus filhos não! Eu pago os melhores colégios para eles serem diferenciados, vencedores…Assim como eu! Sem contar que já poderia te denunciar com essa história de esperá-los no sábado. Eles somem, não dão notícias e não querem ser contrariados. A culpa é sua viu. Porteiro atrevido. Inconveniente. Babaca…
Era o insulto que faltava. Miguel projetou o braço ereto à frente. Suas mãos tremiam. Mas estavam convictas. Sabia o que iria dizer.
-Doutor, o senhor me perdoe. Inconveniente e babaca é o senhor. Que me insulta em pleno horário de trabalho. Não devo e nem mereço ouvir tudo isso. Lamento que toda essa frescura aí do senhor, esse cabelo engomado, essa garrafa na mão seja mais importante que a felicidade dos seus filhos. Por que, no futebol, isso que o senhor tanto detesta, é isso. É felicidade. Alegria. É a gente ter esperança em algo. Eu não sou letrado como o senhor. Não ando com essa grã finada que o senhor tanto aprecia. Mas eu sou feliz com minha Macaquinha. Essa camisa embaixo do uniforme é o meu coração. E quando converso com o Danilo eu só quero repartir o meu amor aqui dentro do peito. E com Daniel eu busco ver o quanto os olhos dele brilham com o meu rival. A sua esposa, com todo o respeito, já percebeu isso. O senhor também deveria ficar mais atento e não ficar como um dragão com fogo nas ventas.
Foi bastante para Tarcísio. O seu olhar fulminante foi suficiente para encerrar a conversa. Com a garrafa na mão, ele saiu pelas ruas do Parque Prado, sem destino definido. Só sabia que dificilmente encontraria um bar aberto. Sem problema. A garrafa, a indesejável parceira, lhe faria companhia.
Miguel, por sua vez, não se abalou. O futebol pulsava em suas veias. Gostaria de partilhar aquela paixão. Para isso, valia tudo. Até subverter as regras estabelecidas para um novo ano. Que ele sonhava sem parar. Pois queria ter todos por perto. Inclusive Daniel e Danilo. Agora, só restava esperar passar o Natal e chegar o domingo. Tinha tudo para ser inesquecível.
(Texto escrito por Elias Aredes Junior- Foto de Staff Images / CBF)
(Ps: Terceiro e último capítulo será publicado amanhã)