Ele queria acostumar-se a nova rotina. Residente em Porto Alegre, o novo treinador do Guarani pega no batente cedo. Cumprimenta os seguranças, abraça seus companheiros de comissão técnica e passa a planejar o treino do dia. Naquela quarta-feira, dia 11, não seria diferente.
Depois do almoço, um breve descanso e mais reunião de planejamento. Próximo do horário marcado para encontrar os jogadores, o novo hóspede do Brinco de Ouro percebeu um deslize:
– Sol está de arrebentar. Vou na salinha pegar o meu boné e já subo– avisou o treinador, elétrico e com uma mistura de simpatia com hiperatividade.
Alguns passos e ao entrar na sala, um susto. Um senhor sentado na sua cadeira. E com o boné na cabeça. O diálogo travado oscilava entre o nonsense e a incredulidade.
– Ei, senhor! Poderia me dar o boné?.Tá um calor miserável lá e não quero me prejudicar…Aliás, os dirigentes não nos apresentaram. O senhor é algum dirigente ou funcionário novo?
– Na verdade não. Sou mais do que funcionário. Sou uma lenda – disse o velhinho, de voz mansa, pausada e com um cabelo branco similar a uma grande teia feita de algodão.
A resposta deixou o novo contratado ressabiado. Nunca vira tamanha ousadia.
– Lenda? Ok, eu estudei a história do Guarani inteirinha. Teve craques como Careca, Amaral, Djalminha, Amoroso, Luizão…E técnicos que também tenho respeito como Carlos Alberto Silva, Zé Duarte…
A ficha caiu. Ficou perplexo. Não podia acreditar que travava um diálogo com alguém que faleceu há 13 anos. Usou as duas mãos para comprimir os olhos. Imaginava um delírio, algo fora do prumo. Nada feito. O velhinho continuava ali, diante de si, estático e mascando como sempre, um chiclete imaginário…
Cauteloso e ressabiado, o novo treinador conduziu o diálogo surreal:
– Ok, senhor Zé. Digamos que tudo isso aqui seja verdade. Me diga: o que veio fazer aqui?- indagou o novo treinador, ansioso pela resposta.
– Vim te ajudar. Se existe alguém que conhece o Guarani sou eu. Dirigi em diversas oportunidades. Para você ter uma ideia fiquei aqui cinco temporadas seguidas na década de 1970…
– Nossa, se eu permanecer um ano já me dou por satisfeito- disse em tom de apreensão o agora novato…
– Os tempos mudaram meu senhor…As pessoas querem vitória para ontem – tentou produzir decepção o novo treinador de nome curto e esquisito.
– Pois é. Só que fiz parte de campanhas vitoriosas, como a conquista da Taça de Prata de 1981 e do terceiro lugar no Campeonato Brasileiro. A vitória sempre produz legados. Sei da alma, dos anseios e das ambições de quem ama o Guarani…
– Disso eu sei. Reconheço e te dou parabéns. Mas no que você pode me ajudar?
Impaciente, Zé Duarte remexia o boné para lá e para cá. Buscava encontrar as palavras. Quando finalmente a sua mente teve o discurso pronto não parou mais de falar:
– Você não está em clube qualquer. Tem uma missão. De reconstrução. Eu e vários outros profissionais ajudamos a deixar o Guarani em um patamar gigantesco. Não podemos recuar. É sua missão é entender os signos, a importância e os códigos do vestiário…
O novo comandante se exausperou. Não imaginava tomar uma lição de tema que dominava tão bem.
– O senhor realmente veio de outro mundo. Se existe algo que eu entendo é na relação com os jogadores. Eu contagio a torcida, dirigentes, imprensa. Não viu o meu apelido? Sou chamado de doido!
– E acho legal, ótimo esse seu vigor. Só deixe lhe contar um segredo. Jogar com garra é bom, é ótimo. Um bom sistema defensivo é primordial. E eu vi seus treinos garotos. São muitos bons. Só que isso é insuficiente. Entenda: a torcida do Guarani quer esperança. Quer vencer sim. Quer ficar na Série B, com certeza. Mas olhe no olhe de cada um que está na arquibancada. O que eles querem e desejam é sonhar. Viver instantes de magia…
– Como posso fazer isso? A equipe está quase na zona do rebaixamento. Impossível, impossível…- balançou a cabeça o técnico novato no Brinco de Ouro.
Zé, com o boné que parecia colado ao seu corpo levantou-se e pegou no ombro do interlocutor e não teve pudor em dizer:
– O sonho vem do nosso desejo. A alma é que produz combustível. Entre naquele campo e faça Fumagalli acreditar de que é possível marcar gols, que Richarlyson pode exibir a garra de antigamente ou que Baraka poderá impedir todo e qualquer ataque. Veja esse garoto o Bruno Mendes. Ninguém desaprende a jogar. Com ele não é diferente. Quando a gente acredita não existe impossível. Faça com que cada descubra o melhor de si. E acredite no que você mesmo pode fazer. O resto vem. Eu te garanto.
A frase sintetizou o final do papo. Seu Zé, como nos velhos tempos, tirou o boné, beijou a testa do pupilo recente e vaticinou:
– Boa sorte garoto! Agora é com você!
Com o boné na cabeça e ainda atônico pelo que acabava de acontecer, O auxiliar Márcio lhe chamou para o treinamento. Quis descrever o que acabou de acontecer:
– Meu, você não sabe quem veio aqui? O seu Zé Duarte!- disse o treinador, agora entusiasmado e sem rumo, louco para contar a novidade.
– Zé Duarte? Que dirigiu a Seleção Feminina em Olimpiada? Cara, você tá dormindo mal…O cara morreu há 13 anos- rebateu o auxiliar.
– Você pode deixar de acreditar, mas é a pura verdade.
– Ok, ok. Vamos trabalhar. Conversa imaginária não ganha jogo.
Esguio e já com o boné na cabeça, o técnico subiu ao gramado do Brinco. Consciente de que seus passos não são apenas vigiados e sim orientados por quem conhece o clube na palma da mão. No céu e na terra.
(artigo de ficção de autoria de Elias Aredes Junior)