Sobre os atos de violência em Varginha (MG) e a criminalização da vida em sociedade

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Não há assunto mais discutido nas redes sociais e nas rodas de conversa em Campinas do que os atos de barbarie ocorridos no Estádio Dilzon Mello, em Varginha. Logo após a derrota do Guarani para o Boa Esporte por 3 a 0, policiais militares, aparentemente sem motivo, agrediram torcedores, integrantes da comissão técnica bugrina e até profissionais de imprensa, como o repórter Marcos Luiz da Rádio Bandeirantes. Um cenário de guerra.

Surgem diversas versões. Pelo relatório do árbitro e para a Polícia Militar, a torcida do Guarani é a única culpada devido aos atos de vandalismo. Este jornalista não quer justificar atos ou atitudes, mas ao conversar com três pessoas que estiveram no sábado na cidade mineira, a justificativa foi a mesma: a quebradeira iniciada no Estádio foi uma retaliação de alguns torcedores contra as arbitrariedades adotadas pela Polícia Militar. Homens, mulheres, crianças, idosos…Nada escapou da fúria intempestiva da corporação.

Que ninguém se iluda: drama registrado em Varginha, Brinco de Ouro, Majestoso, Pacaembu, Canindé, Maracanã, em qualquer campo espalhado pelo Brasil. Ao contrário do planejamento, é a repressão que é utilizada como arma para assegurar a “ordem” em grandes aglomerações.

A criminalização da vida em sociedade. Como acontece? Como a história descreve?

Refleti o domingo sobre o assunto. Conversei com testemunhas e achei salutar discutir um requisito fundamental: a criminalização da vida em sociedade. É algo sorrateiro, malicioso, que acontece sem a gente perceber. Surge como um vendaval.

A batalha de Varginha é a ponta do iceberg de algo ocorrido há anos no Brasil e que sequer governos progressistas conseguem impedir e bloquear.

Como nasce, cresce e desenvolve? Em primeiro lugar, existe a necessidade de você entender algo básico: o fetiche de uma parcela da população pelo autoritarismo exacerbado e pelo uso da força. Vem por intermédio da política em que tivemos apenas cinco presidentes eleitos pelo voto direto. A nossa tradição é o regime de força, exceção e que por vezes estabelece privilegios a uma casta eleita e o “Limbo” para aqueles dotados de menor capacidade financeira e de mobilização, como os pobres e até a classe média, arrebentada com impostos. Getúlio Vargas foi eleito em 1950 mas por 15 anos comandou uma ditadura sangrenta. O mal necessário para alguns. Uma lástima.

Em nome da “ordem”, durante muitos anos colocou-se como prioridade perseguição e prisões de pessoas que pensavam diferente do regime estabelecido. Ou a dificuldade de acesso aos estágios mais altos de quem está excluído do “sistema”.

O poder de mobilização do futebol. Um entrave ao status quo

Você deve pensar: onde o futebol entra nisso? Apesar de ser um esporte popular e capaz de agregar multidões, a modalidade nunca ficou nas mãos do povo de modo cabal. As elites sempre estiveram no comando. Seja política e econômica. Campinas é um exemplo cabal. Na Ponte Preta, Sérgio Carnielli só conseguiu se viabilizar no poder graças ao seu império construído após anos e anos de esforço e trabalho. Na infância, adolescência e começo da fase adulta Carnielli estava fora do poder. Virou o poder. Mesmo Horley Senna só realizou seu sonho de presidir o Guarani porque entrou pela porta da política, quando assessorava o vereador Cid Ferreira. Que queiramos ou não faz parte de uma elite. Um presidente eleito genuinamente saído das arquibancadas? Esqueça.

Clubes de futebol são círculos fechados e poucos têm acesso para interferir no seu destino. Pois é. Isso se não existisse as torcidas organizadas. Formadas com maior ênfase a partir das décadas de 1960 e 1970, são agremiações com uma caracteristica distinta: o torcedor não “vive” seu time apenas aos domingos. O acompanhamento é diário, seja por intermédio de pressão nos locais de treino e comparecimento nos jogos fora de casa. Queiramos ou não, isso conferiu poder, influência e desestruturou o “status quo” estabelecido. No começo, antes da violência entrar no cardápio, era um fator de desequilibrio político nos clubes. A Gaviões da Fiel, por exemplo, surgiu como oposição ao então presidente corinthiano Wadih Helou e posteriormente virou contraponto a Vicente Matheus.

Tem violência? Sim. Atos desabonadores e vandalismo? Com certeza. Mortes já foram provocadas por integrantes destas agremiações? Não há dúvida e a impunidade dos culpados é uma vergonha. Mas de acordo com o professor Mauricio Murad, da residente no Rio de Janeiro e estudioso da violência no Futebol, o total de torcedores violentos é equivalente a 5% do total. Se fizermos uma conta do que ocorreu em Varginha, este contingente de torcedores bugrinos não ultrapassa 1% dos 5 mil presentes. A maioria esmagadora era de torcedores comuns. Se era uma minoria porque interessa criminalizar todos que estavam ali?

As estratégias para criminalizar o torcedor comum e o organizado

Por que isto interessa ao poder forjado e estabelecido do futebol e também ao poder público. O torcedor comum, o pobre, o remediado, classe média, se fosse mobilizado poderia modificar o destino de qualquer clube. Qualquer um. Pegue qualquer movimento social, relembre as jornadas de junho de 2013, os protestos contra a ex-presidente Dilma Roussef e você saberá do que falo. O futebol não pode servir de trampolim para que o próprio povo perceba a sua força.

Qual a estratégia para desestruturar e minar o poder do torcedor comum? Duas frentes são estabelecidas e é neste ponto que os acontecimentos em Varginha ganham relevância.

A estratégia inicial é desqualificar qualquer decisão ou comportamento tomado pelo cidadão comum ou torcedor de futebol. Coloco estes preceitos em vários temas da vida nacional. Por que as novelas dão audiência? “Culpa” do pobre e da classe média “alienada. A esquerda chegou ao poder? O pobre e a classe média foram iludidos. A direita ganhou as eleições? O povo não sabe votar. Confusão no casamento ou no aniversário? Ah, alguém ficou “mamado” e aprontou e não sabe se comportar.

Tem confusão no futebol? Violência nas arquibancadas? Tudo consequência da falta de “modos” dos torcedores comuns e organizados. Que, no fundo, são pobres e sem poder econômico. É a transmissão constante de um discurso desqualificatório, que coloca o cidadão comum incapaz de tomar uma decisão sensata ou de viver em comunidade.

O histórico deixa a Polícia Militar de MG em quadro confortável. Tiros de borracha? Cassetete no lombo de torcedores? Vidros de ônibus quebrados? Ora, o que é isso diante da “selvageria” e da falta de educação de 5 mil pessoas que compareceram para assistir a uma decisão de Série C? Criminalizar e depreciar o oponente é uma estratégia de sobrevivência do poder e do uso da força.

Higienização ampla, total e irrestrita

Para completar, as cenas em Varginhas servirão de combustível para os defensores da elitização do futebol. Cobrar ingressos mais caros, construir arenas luxuosas é o antídoto perfeito para diminuir a violência no futebol, vão argumentar alguns. Não por causa dos bancos bem acabados, dos banheiros limpos ou da praça da alimentação bem cuidada. O argumento é simples e direto: eliminamos aquela “gente inconveniente” das arenas e ficamos com o futebol apenas para nós, os eleitos, os bacanas e bem de vida. Quem são inconvenientes? Quem fica do lado de fora do Allianz Park, quem frequenta estádios antigos como Pacaembu, Moisés Lucarelli, Brinco de Ouro, Vila Belmiro ou quem se atreve a ver o seu time de coração em Varginha.

Você pode não acreditar, mas as ações de Varginha, no fundo, não foram apenas para sustentar a “ordem”, mas para produzir argumentos para quem deseja uma higienização do futebol. Que é de todos. Devemos lutar por isso. Não dá para recuar.

(análise feita por Elias Aredes Junior)