Carta aberta ao meu tio bugrino Samuel

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Tio Samuel*:

Olá?Tudo bem? Aqui a gente se vira como pode. Tenho saudades desde quando nos deixou durante um amistoso da Seleção Brasileira. Era 2004. Você já estava triste pela partida precoce da sua companheira. O futebol te consolava nas horas vagas. Aliás, o Guarani Futebol Clube. Isso sim era sua paixão, sua razão de viver.

Pela sua vida sofrida, o Guarani era um dos únicos motivos de alegria. Por anos e anos, você lutou contra vícios e fantasmas que praticamente lhe deixaram na rua. Na sarjeta. Quase foi derrotado em definitivo de modo precoce. Mas se reergueu. Constituiu família, construiu uma casinha humilde na Vila Formosa e arranjava uns servicinhos aqui e ali com sua irmã, a Dona Ester, minha querida mãe. Lembra as tardes que você passava pintando as paredes de casa? Tudo para ganhar um dinheirinho da minha mãe e comprar um franguinho com Guaraná para o final de semana.

Nestas ocasiões, o seu papo era apenas um: Guarani. Ou melhor, o seu assunto eram as jogadas e os gols de Jorge Mendonça, Careca, Zenon, Renato, Zé Carlos, Evair, João Paulo, Marco Antonio Boideiro. Contava com um entusiasmo de garoto as peripécias do seu “bugrão” a uma criança de sete, oito anos, que vivia entre a sala de aulas e hospitais públicos e particulares. 

Sua linguagem simples, suas roupas surradas pareciam que eram transformadas em algo majestoso quando você citava os acontecimentos do Brinco de Ouro. Aquilo era seu mundo. Um mundo de fantasia, emoção e de vitórias. O que contrastava com o seu sofrimento e a privação da vida real.

De vez em quando, suas aventuras eram também ouvidas pelos garotos da rua, do Jardim Amazonas: o Xande, o André, o Zé. Ou qualquer bugrino que desejasse alegrar-se com aqueles rapazes de camisa verde distantes da nossa realidade.

Aquele Guarani, para você tio, era perfeito. Não tinha defeitos. E você, como torcedor não aceitava nada menos do que a perfeição. Você não queria parar de sonhar. E para sonhar, a exposição da realidade era fundamental. Você era capaz de descrever em minúcias os comentários de Brasil de Oliveira na Rádio Educadora ou de Carlos Gonçalves na rádio Central. Sempre arrematava. “O Juninho, será que eles têm razão? Ah, sei lá”. Você discordava de uns, concordava com outros, mas isto era impossível abalar o seu amor, a sua paixão pelo Guarani.

Você, Samuel Pompêo, me ensinou com o seu comportamento de torcedor e como um derrotado da sociedade campineira que o sonho era o único canal de redenção para quem é negro, pobre e morador da periferia. Que o sonho é o único trunfo para quem teve negado serviços básicos de saúde, educação, transporte e até por um salário digno. Pois é. O futebol não era entretenimento. Era vida. Era renovação de esperança.

Hoje, quando recebo ataques e criticas por todos os lados eu lembro de você, tio Samuel. Reforço minha convicção que se estivesse vivo você talvez me criticaria não por apontar os erros do Guarani, mas por não conseguir despertar no torcedor a necessidade de viver e modificar a realidade para aproximar a integração do sonho ao cotidiano no menor tempo possível. De que o que acontece no rival é importante sim, só que deve ser respeitado. Muito maior era a brasa que acendia no seu peito todos os dias. O amor pelo Guarani.

Sim, tio, eu ando decepcionado com a cidade. Ando magoado com o comportamento das torcidas. Porque apaixonei-me pelo futebol em virtude de pessoas como você, prontos a enxergarem o futebol como algo puro, de alma, sem maldade. Nunca vi você xingar o Guarani. Nunca vi você xingar qualquer torcedor rival. Nunca vi você insultar jornalista ou depreciar ninguém. O que eu via era você gostar do Guarani, nada mais. Sempre pronto a ouvir a verdade e juntar uns trocados para assistir ao Guarani.

Adorava o senhor. Minha família te amava. Não porque foi um vencedor em vida, mas porque me transmitiu que a verdade, mesmo dolorida é a que cura e reabilita.

Eu sei que do céu você torce por mim. E principalmente torce para que o seu sobrinho, aquela criança que um dia teve sete ou oito anos, seja um dia reconhecido profissionalmente como alguém que ama Campinas e seu futebol. De um jeito rude, forte, vigoroso e simples. Como o senhor era.

Bem ou mal, por 49 anos o senhor lutou para ser acolhido por Campinas. Não deu. Caiu em pé. Foi embora com dignidade. Eu continuo na luta. Por você. Pelas minhas famílias, os Pompeo´s e os Aredes. Não sei se vou vencer. Mas vou lutar. Até o fim. Como o senhor.

Fique bem. 

Deus te abençoe tio

Elias Aredes Junior

*Samuel Pompeo era o único irmão da minha mãe , Ester Pômpeo Aredes. Quando faleceu, em 2004, trabalhava como varredor de rua, vinculado a prefeitura Municipal de Campinas.

(artigo escrito por Elias Aredes Junior)