Especial-Dérbi da Vida-Último capítulo-É hora de sonhar e recomeçar

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Quem domina o tempo? Esta é uma pergunta sem resposta. Na alegria, passa como um raio. Nas dificuldades, o relógio é um torturador involuntário. A semana puxa o freio e os acontecimentos ficam em câmera lenta. O apartamento no Parque Prado, outrora adquirido para ser um espaço de harmonia e confraternização, virou uma invisível areia movediça. Ou um abismo à espera do cadáver. Vanda queria esquecer o Natal. E tomar uma decisão.

Não podia adiar o seu futuro. As marcas feitas por Tarcísio no natal ainda ecoavam. Feridas estavam abertas. No corpo e na mente. Não existia saída: pela sua dignidade e honradez, o ano de 2024 deveria começar com ela disposta a viver uma nova vida. Sem Tarcísio. Dinheiro nenhum lhe prenderia ali. Luxos, cartões de crédito e viagens não seriam álibis. Acabou.

O plano seria executado na semana após o aparecimento do Papai Noel. Vanda pegou uma mala encostada na área de serviço. A cada dia, uma peça de roupa entrava no apetrecho. Na sexta-feira, acordaria de manhã, conversaria com Tarcisio e passaria o ano novo com sua mãe. Depois, alugaria um cantinho para dormir e recomeçaria a sua trajetória na advocacia. A amiga Margarida lhe estendeu a mão. Teria dignidade. A amiga de longa data colocou uma condição: teria que registrar um boletim de ocorrência contra o ex-marido. Os tempos mudaram, argumentava Margarida na conversa com a “irmã de alma” no escritório. Falava alto, com dedo em riste, o que parecia aumentar a sua estatura de 1,50 metros, adornado com um cabelo vermelho e um rosto redondo e perfeito que chamava atenção. . Não dava mais para passar pano, alegava. Que a justiça decida o destino de Tarcísio, reforçava. Vanda já sabia o seu. E uma tarde fez o Boletim de Ocorrência, deixou todos os contatos e recebeu instruções para se preservar.

Tudo foi feito em clima de silêncio e tensão.

Enquanto Vanda dava andamento aos seus planos, Danilo e Daniel não tinham o mínimo ânimo para saírem do quarto. A exceção era nos finais de tarde, quando desciam para a área de lazer do condomínio. A bola rolava solta. Se sentiam como forasteiros. Os vizinhos de 12 a 13 anos envergavam camisas de Real Madrid, Barcelona, Paris Saint Germain, Bayern de Munique. A dupla do 513, como eram chamados, não desistiram. Estufavam o peito e corriam atrás da bola e com um adendo: faziam questão de jogar juntos.

Talvez fosse a única situação em que bugrinos e pontepretanos ficavam lado a lado. Até no mesmo time. As gozações surgiam e eram imediatamente cortadas. Não pelos garotos e sim pelo porteiro Miguel. Largava o posto na portaria e corria até a quadra. Não eram broncas ou discursos e sim palestras. Miguel contava a história da Ponte Preta, o pioneirismo de abrir espaço aos negros e descrevia toda a história do Guarani, os dérbis inesquecíveis. Nas primeiras vezes, os garotos ouviam atentamente as descrições que pareciam de outras galáxias. Com o passar do tempo, virou um espalha roda. Miguel não ligava. Só pelo fato dos seus aliados serem preservados já valeu a pena correr todos os riscos. Até perder o emprego.

Independente da tenacidade de Miguel uma hora a bola era recolhida.

Os dois garotos voltavam ao inferno travestido de residência. Era difícil acompanhar o sofrimento estampado no rosto da mãe, o nervosismo do pai. No sábado, dia reservado às atividades preferidas dos garotos, o bate bola em um distante terreno, virou um barril de pólvora. Entrar no quarto era o refúgio. As paredes faziam os garotos sonharem e viajarem pelas delícias da bola. Uma estratégia de fuga da realidade. Compreensível. Daniel olhava para o pôster do Guarani Campeão da Série A-2 de 2018. Danilo tinha ido à forra recentemente. No lado inverso, o quadro com os heróis da segundona regional, conquistada neste ano. Por mais que olhassem não conseguiam dormir. Ou viver.

Os olhos destes adolescentes estavam abertos quando o sol entrou pela janela. Domingo. Véspera do ano novo. Precisavam descansar. Tinham compromisso marcado. Os pais não sabiam. Não importava. Talvez nem ligassem. Estavam envolvidos em seus próprios dramas.

Ninguém sabia distinguir o estado de ânimo de Tarcísio. Fosse alcoolizado ou sóbrio, sua voz era a definição de ameaça. O domingo começou com berros e socos na porta do escritório. Vanda, precavida, preferiu dormir no acanhado cômodo do apartamento. Trancou a porta, ligou o ar condicionado portátil e ficou de costas para a porta feita de madeira maciça.

Os gritos eram abafados e os chutes pareciam a reprodução de um terremoto.

-Abre essa porta, Vanda. Para  de palhaçada!”

-Não temos nada para acertar. Desista. Tarcisio. Eu vou embora. Me deixe viver e recomeçar. Fique e se afogue na fortuna que você ajuntou”.

-Cale essa boca. Você é louca! Ingrata! Vou abrir essa porta e você vai ver.

Os braços de Tarcísio giravam e iam de encontro a porta com uma força descomunal. O barulho alertou os vizinhos. A Polícia parecia ser a única saída para evitar uma tragédia. Tarcísio bebia, bebia e o descontrole era seu sócio. Começou pela manhã, atravessou a tarde e começou a amenizar à noite. Se a bebida transformava Tarcísio em um monstro, também era verdade que em determinado instante era um sonífero devastador. Por volta das 19h, os seus olhos estavam cerrados. Ficou estatelado no chão. Sem forças. Reação zero. Era a brecha requisitada por Vanda. Pegou a pequena mala escondida na área de serviço, abriu a porta e saiu em direção ao elevador.

Desembarcar no andar térreo foi uma mistura de alívio e horizonte à vista. Ao contrário dos dias anteriores, Vanda caminhava com passos firmes. E esperança no coração. Tudo corria dentro do roteiro previsto quando um estalo invadiu sua mente: e os meninos? Onde eles estão? Eles estarão seguros com um pai nestas condições? O semblante de Vanda ficou transfigurado. Não podia voltar. Avançar sem saber o paradeiro das crias seria um passaporte para crise de pânico. Eram 21 horas. Três horas para um novo ano. Vanda precisava saber em que terra pisava seus meninos. Foi direto ao porteiro. Ele não sabia. O pânico aumentou. A luz surgiu quando o porteiro de plantão entabulou uma conversa com um motoboy que entregava uma pizza solitária.

– Vou entregar aqui e já vou correndo pro Cecojam. Cara, o seo Miguel é maluco. Fazer uma simulação de dérbi com os garotos da região, justo na passagem de ano…Quero ir lá só pra ver no que isso vai dar

Vanda nem perguntou. O instinto de mãe gritava. Arrumou a mochila nas costas, deixou o celular ligado e foi para a tradicional praça de esportes do Jardim Amazonas, o Cecojam. Seus rebentos só podiam estar lá.

Vanda correu. Muito. Suas pernas estavam com o desejo de encurtar distância. Queria entrar no gramado, abraçar Danilo e Daniel e formatar a alma. E a vida. Novos conceitos. Talvez sem dinheiro, mas com amor e afeto. Ao entrar na rua Clara Camarão e passar do lado da igreja católica concluída e a rua à direita que desembocava no mais antigo condomínio do bairro, Vanda sabia que estava perto da arena dos heróis anônimos.

Ficou tão entretida em correr, acelerar os passos que quase não viu o inimaginável: um clarão, uma luz forte e que parecia semelhante dos jogos no Majestoso e no Brinco.

Assim como alguém que estava na casa de um desconhecido, Vanda empurrou lentamente o portão principal, caminhou para o lado esquerdo e não acreditou no que viu: o campo cercado por carros. De todos os tipos: populares, importados, Van´s, recém adquiridos ou em petição de miséria. Todos, absolutamente todos, com os faróis ligados na direção do campo. Quantos eram? 30? 50? 70? Não dava para saber. No campo, garotos com a camisa de Ponte Preta e Guarani e no centro o juiz. Nada disso. Longe de ser o árbitro. Era uma mistura de técnico, psicológico, pai adotivo e mestre. Era ele. Miguel. O porteiro. Invísivel durante a semana, soberano para aqueles garotos pobres, oriundos de diversas comunidades e favelas daquela região. Exausta e surpresa, ficou inebriada ao ver o primeiro lance que assistiu: Daniel, o seu menino, bugrino, com a camisa do clube do coração com a bola dominada no lado esquerdo e sedento em superar o seu marcador: Danilo, o lateral direito daquela Ponte Preta escalada para o dérbi de ano novo. Chocada e perplexa, Vanda não percebeu uma mão suave e delicada tocar o seu ombro e lhe perguntar:

– Você é a Vanda?

Ela conseguiu consentir positivamente com a cabeça.

– Nossa, que surpresa boa!.

O cumprimento foi de Valquiria. Uma senhora negra, olhos grandes e esbugalhados e braços curtos, mas imensos no amor e na disposição em servir.

Antes que Vanda esboçasse uma reação, ela desandou a falar:

– Deixe-me apresentar. Eu sou Valquiria, esposa do Miguel, o porteiro do seu prédio. Seus filhos são uma graça. Fizemos questão de buscá-los para este dérbi de ano novo. É a nossa paixão.

Vanda pensou em perguntar se ela era pontepretana. Não precisava. Em um rápido olhar, percebeu que a camisa do Guarani envergava o seu corpo. Ao apresentar as suas filhas, Melissa e Rute, a divisão permanecia. Melissa, de 18 anos, de pele preta, era pontepretana. Esgoelava-se à beira do gramado. Suada, já tinha atuado entre as meninas no jogo preliminar. Rute era bugrina. Cabelo liso, pele mais clara e uma disposição infinita para embalar cânticos de apoio ao Guarani.

Vanda foi absorvida pelo ambiente. As crianças emboladas na comemoração de cada gol, diversos pais em cima de carros com as luzes acesas e gritos de incentivo. As comemorações decoradas ao som de buzinas…Tudo era um sonho. Ambiente festivo, alegre, cercado de gente simples. Pessoas que talvez nunca tenham utilizado um talher refinado ou frequentado uma piscina de um clube elitista. Famílias que escolheram passar o ano novo em um clube de bairro, ao som da bola batendo no gramado e o churrasco de carne de segunda sendo servido em pratinhos de plástico.

E daí? Pouco importa. Vanda nunca viveu tanta verdade, amor e solidariedade em tão poucos minutos. Ela passou a entender de onde vinha o sorriso dos seus filhos. Inebriada e de alma leve, Vanda foi sacudida pela porção quadrada que estava no seu bolso. Era o toque do aplicativo de mensagem. Era Margarida. Recado curto e preocupante:

Estou em frente da sua casa. Vi que não estava em casa. Mas o Tarcísio também saiu, de acordo com o porteiro. Ele vai atrás de ti. Tome cuidado amiga”

Fique tranquila. Eu sei me cuidar. Cachorro que late não morde”

Não conte com a sorte. O localizador do seu celular está ligado? O Tarcísio tem acesso?”

Não deu tempo para nada. Ao olhar no aparelho, Vanda viu duas mãos apertarem seu pescoço. Ela conhecia aquela força. Era Tarcísio. O pior poderia acontecer.

– Não quero ninguém aqui. Não quero ninguém aqui! Isso aqui é assunto de família- bradou Tarcisio ao verificar que Miguel paralisou o jogo das crianças para acudir a mãe de seus alunos.

Faltavam 30 minutos para o ano novo. A alegria foi apagada. Em seu lugar, nervosismo e desespero. Tarcísio estava armado. Colocou o cano do revólver na cabeça de Vanda. Era tudo ou nada. Ou ela ficava com ele ou daria adeus. Não veria o ano de 2024. Sozinha, nunca. Ela era sua propriedade. Um machismo repugnante. Mas era assim que agia e pensava. Nada podia pará-lo.

– Escute Vanda, eu não dei padrão de vida para você ficar com essa ralé…Ver nossos filhos convivendo com esses…esses…eu nem sei como falar…

Tarcisio passou a dizer frases desconexas, sem sentido e a violência saltava pelos poros. O gatilho seria puxado a qualquer instante. Os faróis, antes ligados na direção do gramado, davam brilho a um fanático, alguém capaz de transformar a bebida em um combustível no rumo do abismo

– O que é essa cara de vocês? Quer ser igual a eles? Não será…Vou dar um jeito nisso.

A surpresa, aliada para capturar Vanda seria algoz de Tarcísio. Em um átomo de segundo, um tiro atingiu sua coxa esquerda. A queda foi imediata e suas mãos foram colocadas para trás e paralisadas. Ato contínuo, Miguel, à beira do gramado, gritou

– Grande meio fio!

O apelido, exótico para alguém com dois metros de altura e sardento da cabeça aos pés, era direcionado ao Octávio, policial militar que estava de plantão e entrou no clube ao perceber da viatura a confusão estabelecida. Era conhecido. E respeitado.

A prisão de Tarcísio virou uma formalidade. As algemas encerravam um espiral de violência, machismo e misoginia. Rico, mas agora a grana seria destinada a pagar um advogado para livrá-lo daquela enrascada.

Com tantos acontecimentos simultâneos, poucos perceberam a chegada da meia noite. Os fogos anunciavam mais 366 dias pela frente. Tarcisio, dentro da caçamba da viatura, assistia o espetáculo. Danilo e Daniel brincam à beira do gramado. Batem os pênaltis. Miguel, Valquiria, Melissa e Rute olhavam para o céu. Parecia mais belo e poético do que em outras noites.

Sem alarde, os carros que antes iluminavam o dérbi de ano novo saiam em fileira no rumo da rua Clara Camarão ou da rua Itagiba, as principais do bairro. Todos no rumo de suas casas.

Vanda? Livre do tormento e da violência do marido, queria ter esperança. Estava a pé. Decidiu voltar para a casa luxuosa e cheia de requintes e dotado de um artefato precioso: paz.

A lua iluminava. Vanda estava ao lado dos filhos. Não poderia existir uma sensação melhor. Os garotos aprontam. Conforme caminhavam na rua, decidiram correr em círculos em volta da mãe. Uma ciranda do amor. Sem músicas de sucesso. Entoavam as melodias presentes na alma. Danilo e Daniel. Desejavam um novo ciclo sem ressalvas. E cantavam:

– Estandarte desfraldado

Preto e branco é sua cor

Ponte Preta vai pro campo

Pra mostrar o seu valor

E Daniel aparecia de frente a mãe e respondia

Eu levo sempre comigo

Em todo campo que vou

A bandeira do verde e branco

Símbolo do torcedor

E cantoria continuava com Danilo:

Ponte Preta inflamante

Ponte Preta, emoção

Ponte Preta gigante

Raça de campeão

Quanto mais se aproximava de casa, mais Vanda se emocionava. E via beleza naquela performance improvisada de dois garotos sonhadores em busca do olimpo da vida..

Brinco de Ouro, a nossa taba
Construímos com devoção
Nossa família bugrina
Tem raça e tradição

O futebol ensinava para Vanda de que sempre é tempo de recomeçar. E acreditar de que dias melhores virão. 

(Elias Aredes Junior-Com foto de