Frases são especiais. Definem conceitos e direções. Quando o assunto é o bom jornalismo existem duas que são minhas prediletas. A primeira é do pensador e cronista brasileiro Millor Fernandes. “Jornalismo é oposição. O que passar disso é Armazém de Secos e Molhados”.
A outra é de autoria de William Randolph Hearst: “Jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”. Perfeito. Na mosca.
Talvez o jornalismo seja a área das ciências humanas com maior número de palpiteiros. Ou pessoas sem os instrumentos adequados para analisar a aplicação das suas técnicas. Muitos dizem que o jornalista deve apontar os defeitos mas enaltecer as qualidades de seu objeto de cobertura. Respeito, mas discordo. Especialmente no jornalismo esportivo.
Transparência não pode ser argumento para exigir adesismo em troca
Faço esta introdução para repercutir a matéria publicada no site oficial do Guarani e que mostra a quitação de uma divida trabalhista de R$ 5,1 milhões. E o texto demonstra a divida na área trabalhista com queda de R$ 100 milhões para R$ 16 milhões o montante. A equipe de assessoria de comunicação fez o correto: divulgou. Recebeu a chancela do Conselho de Administração para exercer a transparência. Agora, daí a pedir ou requisitar que o jornalista aplauda de pé é pedir demais. É distorção do conceito do real trabalho jornalístico. Detalhe: o clube jamais pediu isso. Mas muitos torcedores, vira e mexe, pedem tal enfoque. Equívoco total.
Torcedores, sejam bugrinos, pontepretanos ou de outras torcidas pedem que o jornalista enalteça o trabalho ou os acertos de técnicos, dirigentes e jogadores. Não é nossa função. Quero explicar porque essa distorção de função foi disseminada. Infelizmente a cada noticia positiva publicada por sites oficiais existe uma pressão para que o jornalista veja o “lado positivo”. Ou seja, que distorça o real sentido da profissão.
Patrimonialismo e ausência de espirito crítico: da sociedade para o futebol
Tal comportamento tem relação com a nossa história. O Brasil é um país patrimonialista. Em que as relações entre Estado, individuo e sociedade não são separadas. Registramos uma fissura para que o cidadão comum tenha ligação com o Estado. Em troca de pegar um naco de favor do poder estabelecido, existe uma deferência, uma subserviência completa e total.
Vejam a própria história da imprensa brasileira nas décadas de 1940, 1950 e 1960 em que
para não receber retaliação do poder central e ter acesso a cota de papel necessária para
impressão, muitos jornais tinham um posicionamento dócil e titubeante em relação a ditadura Vargas e com os governos Dutra e JK. Ou exerciam pressão para derrubar o governo de plantão quando seus interesses (leia-se diminuição da cada de papel) eram contrariados.
Verifique ainda a trajetória para a concessão dos canais de televisão, fruto muito mais da capacidade de articulação política de seus proprietários do que capacidade comprovada de conseguirem administrar uma concessão. Ou seja, ser dócil com o estado, com o poder estabelecido é algo presente na história contemporânea do Brasil. Fatalmente chegaria ao futebol.
Zizinho e os desmandos do futebol…no Século passado!
Junte tal aspecto a própria trajetória da imprensa esportiva no Brasil. Mário Filho foi o principal inventor do filão no Brasil por intermédio do Jornal dos Sports. Sempre com o foco de enaltecer e elogiar e transformar o futebol em entretenimento, jamais em exercer o espirito critico e um jornalismo mais combativo para denunciar seus desmandos. O foco na maior parte do tempo era a festa, a celebração.
E sim, os fatos no mínimo, duvidosos já existiam há muito tempo. Uma história que retrata tal quadro está na página 116 do livro “A Noite do Meu Bem”, de autoria de Ruy Castro e que retrata a trajetória do samba canção no Brasil. Ali, conta-se a história da venda de Zizinho, então craque do Flamengo, ao Bangu. O então presidente do Flamengo, Dario de Mello Pinto, era advogado e representante do grupo Peixoto de Castro, que detinha a concessão da loteria federal.
A concessão estava prestes a expirar e a decisão ficaria a cargo do ministro da Fazenda, o industrial Guilherme da Silveira e proprietário da fábrica de tecidos Bangu e entusiasta do clube de Moça Bonita.
Ao receber o telefonema do presidente rubro negro e representante do grupo Teixeira de Castro para pedir a renovação da loteria, o ministro disse com todas as letras: a concessão seria renovada, desde que Zizinho fosse transferido ao Bangu. Assim foi feito. Eram outros tempos. Que foi facilitado pelo enfoque dado pela imprensa esportiva ao ambiente de bastidores.
Os marcos do Jornalismo Esportivo com Espírito Crítico
Um ambiente dócil reforçado com a instalação da ditadura militar no período de 1964 a 1985. Apesar do futebol na época ter sido um canal para expressar insatisfações pelo clima opressivo vigente na época, é evidente que o exercício de um jornalismo mais crítico foi dificultado, apesar de algumas façanhas.
Três marcos foram estabelecidos para o surgimento de uma imprensa esportiva mais critica e combativa. O primeiro foi o Jornal da Tarde, que surgiu em 1966. Ali, a bola era retratada. Mas os bastidores também. E em tom critico. Inclusive com recebimento de prêmios Esso, por muito tempo foi considerado o “Oscar” do jornalismo brasileiro.
O segundo marco foi a revista Placar, inaugurada em 1970 e com a série de denúncias da Máfia da Loteria Esportiva, em 1981, comprovou por A mais B que existia corrupção no futebol. Sob a batuta de Juca Kfouri a publicação teve papel para desnudar os desmandos da CBF e suas gestões.
Folha de S. Paulo e os bastidores do esporte
O terceiro ato ocorreu nas décadas de 1980 e 1990, quando o jornal “Folha de S. Paulo” apostou em uma cobertura de bastidores e de outras vertentes dos esportes e que ganhou destaque. Denuncias de corrupção, análise de balanço financeiro, desmandos nas Federações…um cardápio que não terminava.
Foram três contribuições preciosas na tentativa de oxigenar o jornalismo esportivo e conferir ao futebol e aos demais esportes o peso adequado: festa e fenômeno cultural sim. Sem perder jamais o espirito critico.
Aos torcedores que comemoram noticias positivas de Guarani e da Ponte Preta saibam: o jornalismo esportivo de qualidade é feito para dizer aquilo que o público precisa ouvir e não aquilo que o torcedor quer ouvir. Isso faz toda diferença.
(Análise feita por Elias Aredes Junior- Foto de Lucas Figueiredo-CBF)