Ficção Guarani: o acesso como sopro de esperança

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Dia atribulado. Cheio de tarefas. A hora não passa. Otávio parecia paralisado. Sua mente transitava pelo céu. Não conseguia pensar nas toneladas de lixo reciclado que precisava colher para assegurar o pão da família. A mulher Ester e os cinco filhos: Jorge, Evair, Márcio, João Paulo e Renato. Família religiosa. Crente mesmo. A Bíblia não era inspiração para batizar o nome dos guris.

Tudo girava em torno do Guarani Futebol Clube. O celular era velho, batido, bateria gasta. Fazia o principal: sintonizava nas emissoras de FM que transmitia os jogos do bugrão e navegava nos portais para saber notícias do time do Guarani.

A Série A-2 era o calvário. Não tinha fim. Rodada após rodada, a sua felicidade ia sendo construída. Tijolo por tijolo. Gol a gol. Só tinha um problema: o dinheiro era curto. Não conseguia ir ao campo. Arroz e, feijão eram as prioridades.

– No jogo do acesso eu preciso dar um jeito- dizia para si, em um misto de incredulidade e esperança.

Veio a definição. XV de Piracicaba no caminho. Pesquisou e viu o preço para o tobogã. Sua casa e aconchego. Fez hora extra. Percorreu as madrugadas frias de Campinas atrás do sonhado dinheiro. Nenhuma rua escapou. Francisco Glicério, General Osório, Campos Sales, Avenida Anchieta…Em cada loja, posto de gasolina, ponto de ônibus ele se apresentava. Abria um sorriso torturado pelas ciladas da vida e dizia a mesma frase:

– Tem uma latinha para me dar? É para comprar ingresso para o meu bugrão- dizia logo depois de dizer um “muito obrigado”.

Sua simpatia contagiava. Torcedores rivais ajudavam Otávio. Sacos e mais sacos de latinhas de alumínio.

Dinheiro trocado, ingresso adquirido. Só faltava conferir o relógio. O bendito calendário, teimoso em correr devagar, sem pressa pela vida.

O duelo em Piracicaba acompanhou pelo rádio. Ficou escondido no quartinho do barraco erguido nas imediações da Vila Georgina. Nos minutos finais, ajoelhou-se e queria o empate sem gols. Com sabor de vitória.

Jorge, o mais velho, com oito anos, não entendia. Perguntava e tinha apenas uma resposta:

– Filho, o seu time vai voltar a ser grande!- dizia triunfante.

Domingo, segunda, terça e aparece o grande dia. Otávio não queria perder cada segundo. Trabalhou em dobro nos dois primeiros dias da semana para aportar cedo ao Brinco de Ouro.

Às 17h30, o portão de acesso ao tobogã era o seu portal do paraíso. Era o primeiro da fila. Queria passar pela catraca e sentir o chão de cimento na sua pele. Desejava ficar integrado a uma comunidade de irmãos que nunca vi, mas tinham a mesma sensação e sentimento. Todos ali em uma corrida pelo olimpo da redenção. Ele estava como se fosse entrar em campo: calça de moletom verde, camisa oficial de 1994 (propaganda da Magnum) e uma blusa com o distintivo no peito.

Tudo parecia perfeito. O celular treme no bolso de Otávio. Parecia um terremoto. Estava além do normal. Ficou preocupado. Sacou do bolso e viu que era mensagem de Ester, sua companheira. Um toque na tela e a frase curta:

“Bem, seo Agenor está na UTI. Ele quer se despedir de você!”

Seu pai. Não conseguia trata-lo como tal. Até os 15 anos era diferente. Parceiro de todas as horas, o pedreiro negro, forte e falastrão era o herói para a criança mirrada criada no Jardim São Fernando. Até que um dia, tudo virou cinza. Entrou em casa e descobriu que o pai sustentava duas famílias. Não havia como chamar de pai daquele dia em diante. Era 1994. A data do “luto” paterno ele não esquecia: 12 de outubro de 1994. Saboreava a vitória do Guarani sobre o Corinthians, o gol de Amoroso e teve que lidar com a perda de referência.

Estava sozinho no mundo. E assim foi por 23 anos. O recado da esposa deixou tudo embaralhado. E agora? Deixar o remorso corroer a alma ou tentar resgatar um amor que parecia perdido?

Tentou um remendo. Fez um decreto involuntário: “São 17h30. Vou até o hospital e volto a tempo de ver o jogo”, pensou.

O aparelho voltou ás suas mãos. Agora em busca de um aplicativo de transporte. Os trocados para o lanche e a cerveja iriam para a visita familiar de improviso.

Em 20 minutos chegou ao Mário Gatti. Ali, era um estranho no ninho. Atarantado, procurou o setor de informações e disse algo perdido no espaço:

– Por favor, em que quarto está Agenor Medeiros?- disse Otávio com a pressa característica dos boleiros.

– Qual o grau de parentesco?- rebateu a atendente apressada pela pressão do relógio do expediente e pela fila imensa.

– Sou filho dele…

– Espere…Vou ver…Senhor, ele não está no quarto e sim na UTI. Vou entregar uma pulseira de identificação e o senhor conversa com o médico, ok!?

Sem entender nada, Otávio pisou macio na UTI. Doutor Ricardo estava à sua espera. Alto, esguio, careca, pele branca, lábios finos e um queixo quadradinho lhe dava um aspecto de história em quadrinhos.

Otávio quis até esboçar um sorriso pela figura pitoresca, mas assim que Ricardo abriu a boca todo gracejo perdeu sentido:

– Seu pai tem um câncer de próstata e que produziu metástase em outras partes do corpo. Não há mais o que fazer. Restam poucas horas. Ou minutos. Procuramos o senhor em toda a parte porque ele só consegue falar o nome do senhor.

– Eu posso entrar?- questionou Otávio

– Sim, por pouco tempo.

A demora, espera e a explicação dos médicos fizeram o relógio ficar enlouquecido. Eram 20h. Quem sabe pegaria o segundo tempo.

Vestir o avental e a máscara de proteção era quase nada diante da visão que Otávio teve diante de si: o herói da infância e vilão da fase adulta  era um fiapo. Nada que lembrasse o carisma que lhe orgulhava. Fios, frascos de soro, máquinas para medir a pressão e as batidas do coração, médicos e enfermeiros ao redor e a testa enrugada de preocupação era um sinal de que nada ia bem.

Otávio aproximou-se e soltou a pergunta perdida no tempo:

– Pai?

– Filho…

Olhos marejados e o silêncio dominavam Otávio e a UTI

Emoção contida. O diálogo continua. Como antigamente…

-Olha essa camisa, eu estava indo para o jogo quando me chamaram para te ver. Quanto tempo. Talvez nem devesse aparecer, mas…

– Eu sei meu “Tavinho”. Não se culpe. O que importa é que você e ele estão bem- disse Agenor com o olhar direcionado ao distintivo surrado do Guarani na camisa desbotada…

– Quem me ensinou a amar desse jeito foi o senhor…

– Pois é, pois é…E vejo que aprendeu direitinho…

Um elixir de esperança conectou pai e filho. O tempo reconstruiu um elo quebrado.

Subitamente, o desespero tomou conta de Otávio:

– Meu Deus, são 09h25! Já perdi o primeiro tempo. Pai, eu vou lá fora acompanhar o segundo tempo…

– Não, fica aqui. Fica aqui filho. Vem sentar comigo na arquibancada. Pela ultima vez…

A equipe médica não sabia o que fazer. Celulares eram proibidos. Como interromper aquele encontro? Que justifica encontrar para bloquear os olhares e a cumplicidade de pai e filho?

Um leve sinal positivo com a cabeça da enfermeira foi o bastante. Otávio sacou o ceular, sintonizou na FM de preferência e a sorte lhe sorriu: gol de Ricardinho. Guarani na frente. O gol do acesso.

Os minutos passavam e o som do celular impregnava a UTI. Otávio segurava na mão do seu pai. Otávio não existia mais. Enquanto 11 homens defendiam a sua cor de alma, ele buscava de alguma forma fazer com que seu pai vencesse o jogo de sua vida. Era difícil. Ele tentava.

Marcelo Aparecido Ribeiro apitou o final do jogo. O Guarani ressurgia. Acabou a espera.

Sem poder extravasar, Otávio beijou o seu pai e com lágrimas nos olhos queria aproveitar o êxtase daquele momento:

– Pai, subimos!

– Sim, filho.. Subimos… Subimos… Subimos…

De repente, tudo parou. Os aparelhos ao redor emitiam o que Otávio não esperava. Agenor foi embora.

Habituados a luta da vida contra a morte, médicos e enfermeiros permitiam as lágrimas involuntárias. Apareciam emudeciam rostos e embaçavam óculos. Emoção que não impediu a enfermeira de abraçar Otávio. E pedir algo inusitado, com uma voz quase inaudível:

– Eu deveria estar no jogo. Também não fui. Pelo menos me deixa seu agasalho de presente?

Mão direcionada no jaleco da torcedora anônima, Otávio pegou a blusa  e teceu as palavras que eternizaram os escassos minutos naquele lugar eternizado em sua memória.

“Para o anjo que lutou até o fim com meu tesouro perdido e precioso”.

Enrolou a blusa, entregou nas mãos da enfermeira e caminhou para cuidar da despedida de Agenor.

Tinha a consciência tranquila. Otávio sabia que em seu coração o seu pai e herói se transformou em lenda. Assim como os novos heróis do Brinco de Ouro.

(história de ficção escrita por Elias Aredes Junior)

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