Ficção Ponte Preta: Não basta ser filho. Tem que ser pontepretano!

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– Pai, você viu que golaço do Cristiano Ronaldo?

– Nossa, nervosa esta conclusão do Messi hein?!

– Fazer lição de casa? Pai, tem jogo do Real Madrid.. Deixa eu assistir, deixa vai…

A vida de Ronaldo era um inferno aos finais de semana. Não por causa dos filhos Alex e Tadeu, de oito e sete anos. Seus filhos eram a sua vida, sua razão de viver. O saldo positivo do casamento do Zuleika. Eram divorciados. Relação difícil, conflituosa. A ex-mulher cobrava, exigia e ele se desdobrava para não sair da linha.

Aos 50 anos, careca, estatura baixa, barriga ondulada e permeada pelos copos de cerveja bebericados aos domingos, o futebol era sua paixão. Um casamento incompleto. Os filhos não desgrudavam da televisão  e do Campeonato Espanhol e dos ídolos midiáticos. Sua obsessão chamava-se Ponte Preta. Compareceria aos jogos era luxo. Ficava com as crianças um final de semana sim e outro não. Quando tinha os garotos sob sua responsabilidade, a Ponte Preta pisava no gramado do Majestoso.

Ele insistia, argumentava e nada convencia os garotos a lhe acompanhar pelas arquibancadas do Majestoso. Um gol de Messi era atraente. Um petardo de Cristiano Ronaldo exalava sedução. Resultado: as crianças na televisão por assinatura e ele no rádio e no tempo real da internet. Martírio.

Ele não via saída. Quadro irreversível. A cada aniversário, o diálogo repetido:

– Filhão, o que quer ganhar de aniversário?

– Ah, pai pode ser uma camisa do Real Madrid. Como ano passado você comprou a do Marcelo, neste ano tenta a do Cristiano Ronaldo…

Parecia caso perdido. Pior: o fracasso na educação futebolística era lembrado.

O “algoz” era o patriarca. Oswaldo, com 80 anos, poderia ser um daqueles personagens dos anos 1930. Calça branca, camisa branca de linho, gravata borboleta e chapéu panamá. O rosto fino, a careca reluzente e o sapato preto lustrado completavam o figurino de um senhor oriundo de um baile da lapa no Rio de Janeiro. A elegância e a cordialidade desapareciam quando via o filho único e os netos seduzidos pelos astros do futebol espanhol:

– Como você disse isso aconteceu Ronaldito!? Quando você tinha 9 anos seu passeio principal era assistir o Dicá. Depois na adolescência permiti até que você fosse na caravana até Porto Alegre na semifinal da Taça de Ouro de 1981! E nem para um jogo de paulistão você leva meus netos… Ponte Preta é algo sério!

Os dias passavam e Oswaldo tinha agonia como parceira. Pior: o time não ajudava. Proximidade com a zona do rebaixamento, demissão de técnico, jogadores ruins e pressão por todos os lados.

O Torneio do Interior não lhe comoveu de inicio. As vitórias contra Ferroviária, Mirassol e a derrota diante do São Bento parecia mais do mesmo. Nadar, nadar e morrer na praia. Fracasso á vista.

A decisão contra o Mirassol motivou uma alteração de postura. Enrolou uma pretendente, disse que não dinheiro à disposição e trocou o terno e gravata para o restaurante fino pelo uniforme oficial surrado e guardado na gaveta. Ficou enfurecido com o empate.

O clima ficou ainda pior com a ligação da ex-esposa. Zuleika não enrolava. Papo reto. Direto na ferida:

– Já que você não tem competência sequer para pagar a pensão regularmente poderia cuidar das crianças na próxima segunda-feira?- pressionou a estudante de direito com a justificativa na ponta de língua: estudava pela manhã, mas uma prova seria realizada á noite. Não tinha ninguém para ficar com os garotos. Era ele. Ou ele.

– Zuleika, queria ir no campo. Final do Torneio do Interior. Você sabe o quanto a Ponte Preta é importante…

– Pois os seus filhos também são. Vire-se! Fique em casa com eles ou leve-os no estádio. De um jeito ou de outro,..Tchau!

A rispidez da ex-companheira lhe deu uma luz. Levar os garotos ao estádio seria chance única. Para ele seria uma decisão de Copa do Mundo. Dane-se se os outros não ligassem. Não havia mais tempo. O time precisava ajudar.

O tempo jogava a favor. As crianças ficariam em casa no final de semana. Como segunda-feira não haveria aula e ele estava de folga pelo banco de horas da escola em que lecionava, tudo conspirava quebrar a escrita.

Não foi um passeio. Surpresas da vida. Sábado e domingo os garotos nem quiseram conversa. Na segunda-feira, dia do jogo, os argumentos pareciam inúteis. O rumo do roteiro só pareceu querer beneficiar o mocinho quando Ronaldo apelou e fez a oferta final:

– Se vocês me acompanharem eu compro uma camisa do Barcelona do Messi e outra do Cristiano Ronaldo…

-Oba! – gritou Alex, o primogênito e no fundo o porta voz das vontades da dupla.

– Só não peça para ir com a camisa da Ponte Preta. Aí é demais- desprezou o garoto.

O que era um muxoxo diante da perspectiva de levar os filhos ao estádio? Ronaldo celebrou como uma vitória.

Chegou cedo. Aproveitou a promoção de ingressos e economizou para a pipoca da molecada, já entretida com o futebol disputado entre crianças nas imediações do alambrado. Não tinha como falhar, pensou.

Apito inicial. Tortura à vista. Jogadas equivocadas, falta de inspiração e torcedores impacientes com um 0 a 0 desesperador. Nem tanto pelo placar, mas pelas reclamações ouvidas por Ronaldo no ouvido direito e no esquerdo.

– Que porcaria, meu Deus! Pai, melhor é assistir o Espanhol hein !?- apupava Tadeu…

– Pai, esse camisa 9 é muito ruim!! Melhor ver o CR7– resmungava Alex.

No fundo, o pai não tinha argumentos. Rezava pelo imponderável.

Bola vadia, sem destino e aos 22 minutos do segundo tempo, ela aparece nos pés de Silvinho. Baila pelo gramado como uma dama sem companhia e chega nos pés de Emérson, implacável: 1 a 0.

Ronaldo pulava, abraçava, chorava e fazia festa com as crias. Não era como o ambiente frio da televisão. Era no seu estádio, na sua casa, no seu aconchego.

Título conquistado e ele não queria sair. Os meninos, nem fale. Olhos vidrados, expressão de felicidade infinita ao ver a taça levantada por Renan Fonseca. Saiam do estádio e olhavam ao redor como se estivessem em uma nave espacial de sonhos e felicidades. Foram interrompidos por uma mão que tocou no braço de Alex:

– Ei, você sem a camisa da Ponte?- o interlocutor era o mais improvável: um garoto negro, mirrado, rosto fino e camisa colada no corpo pelo suor das arquibancadas…

– A gente esqueceu em casa – rebateu Tadeu, antes do irmão se manifestar.

A criança simples, de chinelo no dedo, calção preto e sorriso escancarado pela felicidade, ali mesmo, diante do olhar de espanto do pai e de seus dois filhos tirou a camisa do próprio corpo e falou:

– Fica para vocês. Tenho outra. Vou usá-la amanhã na escola. Valeu…

Em passos largos, o garoto sumiu.

Deixou Tadeu e Alex, com as mãos cheias daquela que minutos antes jogava e empurrava ao gol. Arquibancada viva.

Paixão à primeira vista. Nem deu para ouvir o telefone de Ronaldo. Zuleika de péssimo humor, insuficiente para estragar a volúpia dos vencedores:

– Zuleika? Oi, sou eu. Sim, tá tudo bem. Os garotos? Sim, levo para casa sim. E como eles estão? – pensou Ronaldo antes da resposta:

– Ah, quem ama à primeira vista sempre está bem.

(história de ficção escrita por Elias Aredes Junior)