Madrugada fria. Cachorros latem sem destino. Pensamentos surgem e desaparecem. Lembro-me de dois nomes. Ester Pompeo Aredes. Elias Aredes. Meus pais. Não estão aqui há quase sete anos. Meu pai partiu no dia 16 de setembro de 2011. A melhor amiga que tive foi embora seis dias depois. Dilacerante o sentimento de orfandade. Por mais que você fique preparado. A dor gera lições e te faz entender o que você é, como é, o que deseja do presente e sonha para o futuro. Tento redirecionar minha vida profissional. Não consigo. Não porque não tente. Só que é impossível fugir daquilo que foi plantado na gente.
Sou rígido com Ponte Preta e Guarani assim como meu pai enfocava a vida. Queria tudo certinho. Nada fora do lugar. Adotava a disciplina e o foco como mantra. Seu armário era uma ode a organização. Pastas de documentos em letra alfabética. Tudo organizado. Quando faleceu, não tive problema em providenciar o enterro. Tinha preparado o roteiro com antecedência: em que lugar aparecer, quais taxas pagar e quitar, quem procurar, contas em pendências, entre outros fatores.
Era o certo. Sofreu. Em dado momento, ao frequentar em certa manhã uma aula de escola dominical presenciei ele sendo humilhado porque desejava dar sua opinião. “Quem é você para opinar sua visão sobre esse assunto? É formado? Tem diploma? É advogado? Engenheiro?”. Foi uma das poucas vezes em que lhe vi sair de cabeça baixa de um lugar.
Vi sua fronte ficar erguida e orgulhoso quando me formei jornalista e minha irmã nutricionista. Certamente pensou: “Eles não vão passar por aquilo que eu passei”. Se estivesse vivo falaria para ele que ainda passo o que ele sofreu. Que eu estudo, me dedico e pessoas me desprezam porque jogam bola, são envolvidos com astros da bola. Ou pessoas que adotam um sentimento de superioridade. Nada diferente do que ele passou. Ele não desistiu. Também não posso.
Sofro as consequências que ele teve ao ter escolhido a estrada pedregosa da correção: desprezo, discriminação, separação, distanciamento, ataques baixos. Assim como ele, não posso me envergar. Por que aquele homem, seja para pagar uma conta de luz, adquirir um automóvel ou até uma bala teve a consciência de que fez o melhor. E bem feito. Não, a despedida dele não teve final feliz. Morreu sozinho em uma cama de hospital. Com alguns amigos. Quase sem amigos. Deixou um legado. Penso: se meu pai teve furor e determinação, por qual motivo vou me arregar e adotar uma postura doce com Ponte Preta e Guarani? Do que vale agradar centenas e milhares e ver a alma ser jogada na vala comum da mediocridade e da cumplicidade da derrota? Sim, tenho meus pecados e meus dramas particulares. Especialmente porque sinto decepcionar quem nunca decepcionou ninguém.
Se meu pai ensinou-me que a retidão vale em qualquer área, minha mãe ensinou-me algo que transportei ao futebol, ao relacionamento com o torcedor. Arquibancada é lugar de aconchego. Carinho. De amor. De nunca desistir de buscar a humanidade quando a sujeira, a ignorância reinante no futebol querem impor o contrário. A grosseria, a estupidez não podem prevalecer.
Confesso minha queda pelas senhoras. Cada uma que cumprimentava no Brinco de Ouro ou no Majestoso virava uma extensão da minha mãe, da minha irmã, das mulheres da minha família. Pisar nesses locais é lutar por um surgimento de uma esperança que parece vã. Sem sentido. Só que não tenho direito de desistir. Por que minha mãe não desistia. Nunca deixou de acreditar. Na vida e de que podia encontrar seres humanos de bom coração capaz de dar sentido a comportamentos perdidos no tempo: solidariedade, empatia, humanidade. Isso. Humana. Assim poderia definir minha mãe.
Já tentaram me desvirtuar da estrada. Sugerir que deveria abrir mão de minhas convicções, ser maleável. Ou fazer um papel que agradasse o senso comum. “Nossos times não valem qualquer lágrima ou sacrifício”. Foi o que já ouvi. Dezenas de vezes.
Olho no retrovisor da vida. Não consigo e não quero mudar de rumo. Primeiro porque não quero. E em segundo lugar que quem traçou a estrada pode não ter ficado rico nem ter sido recebido por reis e rainhas.
Mas a dona Ester e o Seo Elias me ensinaram que ao acompanhar Ponte Preta e Guarani, um conceito nunca, jamais pode ser desprezado: não se vende o ensinamento de princípios e de cárater forjados no berço.
Cobrir Ponte Preta e Guarani, da maneira que faço, mais do que uma opção profissional, é uma pálida homenagem a eles. Saiba: vale muito a pena.
(artigo de autoria de Elias Aredes Junior)