A história de Maria, uma guerreira pontepretana em busca de um sonho

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Maria é divertida. Expansiva, determinada, trabalhadora. Negra, cabelos longos, olhos redondos, corpo castigado pelo tempo e sofrimento  e um sorriso que parece querer invadir o mundo.

Durante a semana, batalha pela vida. Duas conduções para chegar ao trabalho no Jardim das Paineiras. Mora na região do Campo Grande. É empregada doméstica. Presencia  a desigualdade social nos seus olhos. Pobres sem perspectiva e ricos por vezes sem piedade. Não desiste. Acredita em uma vida melhor.

Seu combustível é Dafne, sua filha, fruto de um relacionamento. Tem outra paixão: a Ponte Preta. Pensa no time e  na filha as 24 horas do dia. Recebe um salário mínimo e o coração fica apertado. Fica o dia inteiro fora de casa e deixa a filha entregue ao destino após o período escolar pela manhã. Amorosa, delicada, de fala mansa e doce, espevitada, cheia de dúvidas e questionamentos a adolescente de 12 anos herdou da mãe a esperança e a paixão pela Macaca. Cada uma exerce o amor da maneira que aprendeu pelas ruas e armadilhas da vida.

Maria tem 50 anos. Não está acostumada ao mundo digital. Gruda no radinho o dia inteiro e só desliga quando acaba a pilha. Às quartas feiras ou na quinta, se tem jogo da Macaca o ritual é sagrado: faz a janta, toma um banho, veste um pijama, deita na cama e coloca o rádio na sua estação preferida para acompanhar a Ponte Preta. Televisão por assinatura, transmissão por tv aberta é tudo muito diante. Ela não vê a Ponte Preta joga, mas sente, pensa, sofre, comemora. Como se estivesse no gramado.

A filha prefere o celular. Pega os 10 reais dados pela mãe semanalmente para carregar o pacote de dados e ali acompanha os resultados e os comentários nas redes sociais. Ambas apaixonadas e com uma frustração em comum: nunca assistiram ao vivo um jogo da Macaca. Jamais presenciaram a comoção das arquibancadas ao vislumbrar a entrada dos jogadores, as bandeiras, os batuques, a comemoração esfuziante dos gols…Nada, nada. Como sonhar se a vida não permitia?

Em uma casa simples de 50 metros quadrados abraçaram-se e choraram após a classificação contra o Santos e o sofrimento e a epopeia diante do Palmeiras. Corinthians na final. Quebra de tabu à vista. Nova luta contra o imponderável. O jeito era preparar-se para emanar vibrações a distância. Sem grana para lutar pelo bilhete premiado.

A alegria do sábado abriu passagem para a decepção da segunda-feira: Maria estava desempregada. Demitida sem justificativas ou explicações. O sorriso deu lugar aos olhos marejados, ao rosto caído e derrotado. A vida que era apertada iria ficar indefinida. Não existia saída.

O relógio marcava 13 horas quando a porta casa se abriu. Dafne correu para ver o que era. A mãe entra, coloca os sapatos perto da porta do quarto e a voz não escondia o quanto estava arrasada.

– Filha, perdi o emprego. Mas vai melhorar. Tenho fé- disse Maria, olhos fixos naquela que era seu maior tesouro.

– Mãe, não desiste. Isso passa. A gente merece ser feliz- respondeu a garota, maquiagem borrada ao colar o seu rosto ao da mãe.

– Bem, não dá tempo de pensar no pior. Vou falar com sua tia Camila e ver o que podemos fazer. Quem sabe ela me recomenda para trabalhar em outra casa…- disse a líder da casa.

Camila era a tia que qualquer um pediu a Deus. Bem humorada, antenada e bem sucedida profissionalmente. Era enfermeira. Pontepretana  de quatro costados como a irmã e a sobrinha. Contava as horas para o grande jogo. Com uma diferença: ela estava determinada a comprar o ingresso. Tinha recursos. Não comprava para a irmã e sobrinha pelo orgulho da primeira. Nunca lhe pediu nada apesar de roteiros tão diferentes. Não queria ser um fardo para a irmã. Camila não se conformava. Porque frequentava o estádio em ocasiões especiais. Sempre lhe faltava algo. Os olhos, o grito de incentivo e o calor humano da sua família.

Não esperava a mensagem de Whatsapp da adolescente e sobrinha inquieta. Papo reto e direto:

“Tia, a mãe perdeu o emprego. Vamos fazer uma surpresa para ela? Passa aqui em casa! Beijos”

No final da tarde, Camila aparece de surpresa na casa simples e arrumada da irmã. Bate um papo com Maria e faz uma proposta estranha, esquisita, sem nexo, ainda mais por ser no meio da semana:

– Mana, posso levar a Dafne para dormir em casa? Rotina de hospital é massacrante e uma vez ou outra arejar uma cabeça com um papo adolescente inconsequente é uma boa. Tudo bem? Não há problema se ela faltar da escola amanhã?

Desconfiada e sem entender, Maria fez um muxoxo pela perda da aula e autorizou saída repentina. Fez a mala da garota, deu um beijo em Dafne e fez as recomendações de praxe de toda mãe. Mal sabia que a bagagem nem seria usada.

Eram 22 horas da terça-feira, quando Camila pegou Dafine pelo braço, entraram no ônibus, usaram o segundo na baldeação e se dirigiram ao estádio Moisés Lucarelli. Era preciso batalhar por três ingressos.

Fome, frio, atropelos na fila, policiais militares com péssimos modos, cambistas com domínio de cena. Tudo conspirava contra. Teve o lado positivo: o congraçamento com gente que partilhava da mesma expectativa, de idêntico sofrimento. Gente com disposição de soltar o grito de campeão.

O sacrifício valeu a pena. Nas primeiras horas da manhã o santo Graal estava em mãos. O tão sonhado ingresso. A primeira estadia de Dafne no mundo do futebol. E da mãe.

Exultante, a menina já sabia da busca da mãe por trabalho no período da manhã. Quis armar uma pegadinha do bem. Pediu um dinheiro emprestado a tia, passou no centro da cidade, adquiriu o que precisava e voltou para casa e armou  o cenário.

No final da tarde, Maria girou a chave de casa e pisou na sala. Cansada, decepcionada e amargurada. Não arranjou nada. O futuro era incerto. Estava de cabeça baixa. Ergueu a fronte levou um susto ao ver o que estava colocado na mesa da pequena copa da residência.

Andou alguns passos, olhou e não acreditava: no lado direito do pequeno móvel, uma camisa retrô da Ponte Preta de 1977. Impossível segurar a emoção. Relembrar a infância e recordar o choro do pai após o gol de Basílio. O fim do sonho de um time de sonhos. Suas mãos, na ocasião de uma menina de 10 anos, consolaram um senhor decepcionado pela perda  de um tesouro que escapou por entre os dedos. Nunca mais esqueceu. Comemorar em 1977 seria uma maneira de recompensar o coração apertado daquele senhor que deixou seu convívio já cinco anos por um estúpido atropelamento que sofreu na Avenida das Amoreiras.

Controlada a emoção inicial, Maria pegou a camisa com as mãos, sentou na cadeira de madeira carcomida pelo tempo e viu aquele manto que lhe deu tantas alegrias ficar encharcado de lágrimas. De saudade. E por um tempo que não voltava mais. Quando a concentração naquela peça parecia querer lhe deixar em transe, virou seu olhar ao envelope colocado na mesa. Branco, com uma faixa transversal. O documento estava fechado, sem estar lacrado ou colado.

A curiosidade falou mais alto. Maria abriu e viu um papel dobrado e com uma frase escrita à mão, de modo delicado, quase como uma caligrafia de livro do século passado:

“Lembra quando eu disse que a gente merecia ser feliz?”

Ao deixar o papel no tamanho natural dois cartões caiam de imediato. Eram os ingressos para a final entre Ponte Preta e Corinthians. Maria realizaria seu sonho. Assistiria a sua Ponte Preta, ao vivo, em cores. E ao lado de quem ama.

E este amor infinito surgiu e lhe abraçou por trás, forte. O silêncio tomou conta da sala. O amor e a emoção também.

Talvez por saberem que o coração de ambas estava em festa. E que cada uma não via a hora de sentar na arquibancada e partilhar daquele amor com seus irmãos de fé e de camisa. Que assim como Dafne e Maria nunca perderam a esperança de dias melhores.

(crônica de ficção de autoria de Elias Aredes Junior)