Ponte Preta: uma conversa do Capitão com a Camisa Oficial

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Parecia um dia normal. Os jogadores da Ponte Preta comparecem para mais um dia de treinamento. Pressão de todos os lados. É preciso reagir. No vestiário, não há espaço para brincadeiras ou gracejos. Concentração total. Todos pegam seus pertences, vestem o uniforme de treino e vão se dirigindo ao gramado do Centro de Treinamento do Jardim Eulina. Estão cabisbaixos. Sentimento de derrota no ar.

Outrora idolatrado pelas arquibancadas, o camisa 5 parece disperso, desligado. A faixa de capitão é um adendo esquecido no canto do armário. Fica introspectivo nos seus pensamentos. Não vê quando todos se retiram. Fica sozinho. Estica a mão na direção da gaveta. Vai pegar a camisa para o trabalho do dia. Fica ao lado de um jogo de uniformes oficiais.

Prepare-se para um ritual conhecido, desgastado. De repente, tudo muda:

– Ei, oi?

O volante espigado e estiloso toma um susto. Olha ao redor. Procura o interlocutor. Pensa tratar-se de uma pegadinha, uma armadilha dos companheiros. “Que coisa sem graça”, lamentou.

– Olha aqui. Sou eu. Vem falar comigo

Deu um passo, dois, três olhou na direção do armário. Não queria concluir que estava louco. Não poderia a camisa oficial guardada com tanto esmero pelo roupeiro querer brincar de Ghost. Não tinha nexo.

– Quem está com brincadeira? Não tem graça nenhuma- dispara o jogador, entre uma mistura de nervosismo e incredulidade.

– Você não sonha e nem está em delírio. Sou eu, a camisa que você veste em todos os jogos, testemunha ocular de sua classe, do seu talento

– Eu vou embora trabalhar que eu ganho mais. Isso aqui só pode um insulto a minha inteligência!

– Não é palhaçada não…É apenas a reclamação de alguém que se sente traído?

– O que? Desde quando camisa tem sentimento? Ha ha há…É um escárnio…

A chuteira estava no chão. O camisa 5 já pegava o apetrecho na mão quando ouviu o último apelo:

– Pense o que quiser. Antes me escute. Depois faça o que quiser. Me rasgue, destrua o vestiário, pesquise se tem alguma escuta…Só depois de me ouvir- apelou a camisa que estava do jeito conhecido: branca, limpa, com faixa transversal e com o símbolo explodindo no lado esquerdo peito.

– Tá bom. Que seja breve- concordou ressabiado o atleta

– Ok, Bom ver você mudar de ideia. Porque eu só consigo ver em você uma maneira de apelar.

– E você acha que a gente quer cair? Tem alguém aqui de brincadeira? Somos trabalhadores, pais de família

– Não falo disso. Falo de algo muito mais profundo e verdadeiro. Não tem relação com profissionalismo ou apego a família. Tem relação comigo.

– Como assim?- disparou o atleta, agora atento a conversa.

– Dos outros eu até entendo, porque chegaram agora, consideram a Ponte Preta como mais uma estação para faturar. Você não! Você não tem direito de ser apenas profissional e de me considerar apenas mais uma camisa.

– Por que?

– Primeiro porque me conhece há quatro anos. Sabe do que eu sou capaz. E do que represento. Eu simbolizo o sofrimento de um povo. Eu sou o símbolo de gente que saiu de casa e abdicava do lazer com a família para construir um estádio com as próprias mãos. Eu sou o reflexo de milhares que cruzaram o interior do estado de São Paulo para tirar um time da segunda divisão. Eu tive a força de calar o Morumbi com 147 mil pessoas. Eu calei o estádio Olimpico com quase 100 mil pessoas. Eu venci na Argentina. Eu desbravei fronteiras. Venci meu rival incontáveis oportunidades. Eu acolho o riso e a lágrima de um povo. Como você pode dizer que sou uma camisa qualquer? Como teve coragem de esquecer tudo isso?

Entre constrangido e envergonhado, o camisa cinco trocou a incredulidade pelo respeito e consideração.

– Não tiro sua razão. O que podemos fazer? O que você quer que aconteça?

– Olhe para mim, cara. Eu já te dei tantas alegrias. Eu te coloquei no pedestal. Como sempre. Eu te dava meu coração e em troca você dava sua alma. Com classe, categoria. Mas dava. É isso que eu quero. É isso que desejo.

– E a turma que bateu na gente no aeroporto? Aquilo que não tem justificativa…- disse o atleta, ainda ferido pelos acontecimentos.

– Não tem justificativa. Concordo contigo. Eu não posso ser associado com raiva e sim com alegria e esperança. Só que a apatia, a inação, a falta de luta, são portas abertas para que os inconsequentes entrem em ação. Desculpe meu querido, mas nos últimos meses ninguém aqui tem suado a camisa. Nem você.

– Mas eu me entrego 100%- rebateu o jogador

– Eu não quero 100%. Eu preciso de 120%, 150%. Não quero ver o seu suor entrar pelos meus tecidos entrelaçados. Eu quero sangue, alma, entrega. Você precisa justificar o símbolo que carrego no peito.

Prostrado no chão e sem reação, o jogador, outrora elogiado e agora alvo de críticas e xingamentos, chorou. Convulsivamente. Seja loucura ou delírio, nunca ouviu verdades tão doloridas, autênticas, necessárias.

Ele queria recomeçar, dar uma virada, sair da temporada de cabeça erguida. Não sabia como. Mirou os seus olhos na camisa agora colocada no cabide. Esperava uma luz, uma palavra, uma luz opaca que fosse…

– Você sabe o que fazer. Já fez e foi recompensado. Encare cada treino como uma final de Copa do Mundo. Entre no gramado como se fosse o último ato da sua vida. Peça aos seus companheiros que encarem esses últimos jogos como se não existisse mais nada na vida. Nós estaremos com você. Cada camisa vai virar um gigante, terá uma força incomensurável, uma energia que lhe deixarão embasbacados. Eu sou assim. A Ponte Preta é desse jeito. Não desiste. Lute. Batalha. E vence. Não com a alavanca manca do dinheiro, do reconhecimento e da fama mas com a catapulta do amor incondicional que vem das arquibancadas. Eu vivo isso há 117 anos. Já tive outras formas. E sempre busquei a felicidade de um povo. Faça isso também.

Em lágrimas, aos prantos, o camisa 5 só teve força para balbuciar a frase que vinha na sua mente:

– Obrigado. Vamos te honrar. Eu prometo…

O afago na camisa agora calada encerrou o papo. O vestiário foi percorrido em tempo recorde. O aquecimento já rolava no gramado do CT. Não havia tempo a perder.

– Treinador, reúna todo mundo porque recebi um recado importante…

E a vida parecia que começava andar. No rumo da felicidade.

(artigo de ficção de autoria de Elias Aredes Junior)