Tadeu batalha pela vida. Pedreiro, morador na Vila Georgina, sobrevive com dois salários mínimos. A esposa Andréia é empregada doméstica e atua em cinco residências. O casal se desdobra para dar o mínimo aos filhos: Adriana, Renata e Paulo. Um dos luxos é a televisão por assinatura. Especificamente o pacote de pay per view do Campeonato Brasileiro. São quase 100 reais mensais (o Sócio Torcedor seria mais caro) por um objetivo: transformar a casa em uma república pontepretana.
Nas duas primeiras, já adolescentes, Tadeu não precisou esforçar-se. Campanhas no Campeonato Brasileiro, na Copa Sul-Americana e em finais de Campeonato Paulista fizeram as meninas adotarem a macaca como razão de sentir, viver e torcer. Quarto todo decorado. Bandeiras, camisas, copos…Tudo gira em torno da “veterana”.
O pai, no entanto, tem uma angustia. O filho caçula. Com cinco anos, Paulo começa a se interessar por futebol. Encontra-se seduzido pelo futebol europeu. O Playstation 3 de segunda mão e os campeonatos europeus fizeram com que ele ficasse apaixonado pelo Barcelona. Ou por Messi. São meses e meses e o filho sem ânimo para ver um confronto da Ponte Preta, com o Corinthians, Flamengo, Fluminense, São Paulo, Botafogo ou Grêmio. Só que quando o Barcelona entrava em campo diante do Real Madrid ou Atlético Madrid, os olhos do garoto baixo, olhos castanhos pequenos, cabelo preto, lábios carnudos e pele negra ficavam alucinados. Não pensava em outra coisa. Tadeu considerava um caso perdido.
Até pela condição financeira. O aluguel de R$ 1,2 mil era até barato, mas não permitia voos mais altos. Tinha que se contentar em andar de ônibus e contar com as filhas matriculadas na escola estadual Procópio Ferreira. O filho? Na creche, o dia inteiro, para a esposa Andréia batalhar pelo pão de cada dia. Uma luta que aos poucos parecia inglória. O filho, o sonho acalentado, não ligava para sua Ponte Preta.
Antes de dormir, a cama do casal virava um divã.
– Quando casei com você, eu quis ter um garoto. Meu sonho era que ele me acompanhasse no Majestoso. Comemorava os gols do Washington, do Luis Fabiano, do Felipe Bastos e pensava como deveria ser legar ter alguém do meu lado para abraçar. Como é que meu patrão diz mesmo? Ah, lembrei, sangue do meu sangue- balbucionou Tadeu, já com lágrimas com olhos e até com dificuldade para pronunciar simples palavras.
Andréia entendia. Era pontepretana. Só que sua esperança permanecia viva. E tratava de evitar que a alma do seu amor ficasse com a chama apagada.
– Eu sei do seu esforço, da sua dedicação. Dizem que time a gente nunca escolhe. É verdade. Mas como seria lindo toda a família junta no Majestoso! Eu tenho fé de que vai acontecer- ratificou a morena baixa, mas de fala firme e decidida.
Amanhece a sexta-feira, dia 29 de setembro. Tadeu levanta para trabalhar e antes de pegar o ônibus confere os grupos de Whatsapp. Todos de amigos e parentes pontepretanos. Eis que veio a noticía: o jogo contra o Flamengo, na segunda-feira, dia 02 de outubro teria o ingresso a R$ 10 e com meia entrada a R$ 5.
O coração palpitou. A emoção tomou conta de si. Era chance para voltar a assistir a nega veia e de quebra seduzir o filho. Conquistá-lo em definitivo. Só existia um obstáculo: dinheiro. Era final de mês. Dinheiro contado somente para o pão, a passagem e o lanche das meninas na escola.
Não tinha como esperar amanhã. O contato com a esposa pelo Whatsapp foi imediato:
– Benzinho, a Ponte Preta vai jogar. A R$ 10. É a chance de levar a família. Se puder empresto dinheiro…
O status de “digitando” na mensagem produziu agonia maior. A resposta gerou alivio redentor:
– Não precisa. A dona Zuleika me pagou. Vamos pro estádio!
Os dias transcorreram. O final de semana virou um mês. A proximidade do jogo elevava a tensão. Tudo misturado: a sede de vitória, a necessidade de fugir do rebaixamento e de quebra a última chance para que o filho caçula entendesse o que é a Ponte Preta. Sem contar o ceticismo em uma criança de cinco anos:
– Pai, porque ir nesse jogo? Eu gosto é do Messi- disse o garoto na sua sinceridade cortante.
– Paulinho, você não vai assistir a Ponte Preta. Você vai em um passeio de família- despistou Tadeu, louco para chegar a hora da bola rolar.
Depois de uma segunda-feira exaustiva de trabalho, Tadeu chegou em casa, entrou no chuveiro como para quem vai para uma batalha e colocou o manto com a faixa no peito. A família paramentada, exceto Paulinho, que vestia uma camisa preta sem símbolo e distintivo.
Correram para o ponto do ônibus e pegaram a linha 3.48. A parada na rua General Carneiro deu início a uma caminhada com cara de procissão. Pontepretanos de todos os lados em direção ao estádio Moisés Lucarelli.
A ansiedade explodia em Tadeu. Paulo, antes um garoto birrento e resistente, olhava embevecido para aqueles homens, mulheres, idosos, crianças e loucos e fieis que soltavam o grito de “Ponte!” pelas ruas.
De mãos dadas com o pai, Paulo caminha, para, observa. Está hipnotizado por aquela massa humana determinada a carregar um time limitado nas costas.
– Bem, vamos lá no último degrau. É onde gosto de assistir aos jogos- decretou o pedreiro, que parecia em casa. Ao chegar, reencontrou velhos amigos: o João Boca de Cuica, o Serafim perdigueiro, o Antonio Bigode ralado. Companheiros de longa jornada. Todos pontepretanos.
Cumprimentos, celebrações e João, indiscreto olhou no garoto e disparou:
– E aí, garoto? Torce para Ponte Preta ou liga para esses estrangeiros de meia tigela?
Tadeu gelou. Andréia ficou apreensiva. Renata e Adriana, as irmãs já crescidas olharam para trás. Não queriam ver o caçula fazer o papel de estraga prazeres. O que não esperavam era o primeiro abalo em uma convicção indestrutível na aparência.
– Não sei- respondeu Paulo.
Se pudesse, Tadeu já comemoraria ali, no cimento frio e histórico do Majestoso. O espírito, a alma pontepretana já entrava com um míssil em um coração capturado antes por distantes catalães.
Eis que começa o jogo. Disputado, travado, sufocante. A Ponte Preta com limitações. O Flamengo com um exército de talentos. Pressionava, criava, produzia oportunidades. Ato contínuo, Tadeu e sua família não pensaram duas vezes. Seguiram a arquibancada. Gritavam, incentivavam, insultavam o juiz, pediam raça…Não queriam sair dali com a sensação de derrota. Tadeu tinha motivo excedente: uma derrota colocaria por terra o sonho de ganhar um novo companheiro de arquibancada, mesmo que sazonalmente.
Veio o segundo tempo e um chute de Jean Patrick estufa a rede. Gol da Ponte Preta. Delírio no Majestoso. Arquibancadas em festa. Tadeu agarra Paulinho como se fosse o último ato de suas vidas. Joga o garoto para cima. Lágrimas, emoção. Minutos depois, tempo para uma pergunta de um garoto de cinco anos envolvido por um clima alucinante:
– Pai, a Ponte Preta não vai tomar o empate? Diz que não vai…
– Filho, pega na minha mão e vamos torcer, rezar…Fazer o que foi possível…
Os minutos derradeiro pareciam meses, anos. Tadeu e Paulo de mãos dadas e sofrimento estampado a cada lance, a cada carrinho ou chute. Andréia, a esposa e companheira fiel, colou o fone de ouvido, sintonizou na rádio favorita e cobriu a cabeça com a bandeira. Só queria ouvir. Nada de presenciar. As adolescentes? De costas para o gramado, sem coragem de ver o que poderia ser o início da redenção. Ou a continuação do sofrimento.
O esforço valeu a pena. Apito final do árbitro e vitória assegurada. Ponte Preta reabilitada e fora da zona de rebaixamento. Alivio e celebração. E o questionamento que para Tadeu valeu por uma vida inteira:
– Pai, quando a gente volta para ver a Macaquinha?
Olhos marejados, emoção a flor da pele, Tadeu só teve forças para responder:
– Quando você quiser filho, quando você quiser…
Os cinco saíram de lá felizes. Foi uma segunda-feira inesquecível. Um gol deixou uma família unida e feliz. Com o coração pontepretano. Para sempre.
(crônica de ficção de Elias Aredes Junior)