Uma lembrança sobre dérbi e família

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O barulho era incessante. Piadas, causos, relatos, risadas, gritos daqui e dali. De repente surgiam nomes como Jorge Mendonça, Dicá, Chicão, Éderson. Eu estranhava. Não eram da família. Não almoçavam e jantavam ao lado dos meus pais. Nem sentavam no banco da Igreja Metodista Central, localizada na rua Ferreira Penteado, em Campinas e que passei parte da minha infância. Sem pedir licença, viravam o assunto principal.

Eu, uma criança de nove ou dez anos (com o passar do tempo a gente perde a referência) ficava intrigado. Primeiro porque não entendia aqueles nomes e pessoas serem pauta na confraternização de final de ano e em uma casa simples, rústica e distante 351 KM de  Campinas. Guarantã, a sede da resenha. Sem querer eu testemunhava a cada final de ano uma mesa redonda no estilo da Resenha Facit. Não tinha João Saldanha, Armando Nogueira, Luis Mendes, Nelson Rodrigues. Mas tinha Elias, Joel, Enoch, Francisco, Oady. Anos depois, no final da década de 1980, apareceu o sexto integrante, Nabal. Todos Aredes. Todos loucos por futebol. Excetuando-se Nabal, que fez sua vida na região norte do país, todos venceram e triunfaram na Princesa D´Oeste. Alguns adotaram a Ponte Preta como time do coração, como Oady; outros torciam loucamente para São Paulo ou Corinthians, mas não deixavam de acompanhar a saga da Ponte Preta em busca de um lugar ao sol ou a fábrica de craques que se transformou o Brinco de Ouro.

Na verdade, os primeiros cronistas que admirei foram eles. Negros, trabalhadores, inteligentes e sábios. Passavam horas e horas na varanda na frente de uma casa simples, em Guarantã com a defesa de inúmeras teses. Tempos dourados. Dérbis eram relembrados e discutidos. Clássicos da capital eram relembrados em detalhes. Meu pai dizia em tom de lamento ter testemunhado a derrota da Ponte Preta para a Portuguesa Santista em 1965. Ou sua estranheza vivida em plena década de 1960 quando na entrevista de emprego indagavam se você era bugrino ou pontepretano.

Causos e recordações a respeito de caravanas em Piracicaba e Jundiaí. Tudo pela Ponte Preta. Ou as aventuras na cabeceira do Brinco de Ouro em que na atualidade encontra-se no placar eletrônica. Naquele tempo, nomes como Clinho, Zé Duarte, Carlos Alberto Silva eram distantes da minha realidade. Os técnicos eram eles. Meus tios. Sabiam tudo. A escalação do São Paulo, do Corinthians, as revelações de Ponte Preta e Guarani, as datas dos dérbis. A resenha não tinha hora para acabar nas festas de final de ano e eram sazonais enquanto todos batalhavam por uma vida digna.

Faço uma viagem no tempo. Alguns estão na área. Francisco, Nabal e Enoch. Outros não se encontram mais aqui. Meu pai por exemplo. Mas a cada programa ou transmissão e artigo, vejo a reação enfurecida de alguns, o comportamental doce de outros e agradeço. Não só por fazer o que gosto. Mas por ter frequentado uma escola de amor e de afeto que foi capaz de me transmitir o verdadeiro sentimento de Ponte Preta e Guarani. Nunca de guerra ou violência e sim de renovação contínua da esperança. No fundo, no fundo, o futebol é isso: é saber que a cada 90 minutos você aprende o sentido de amor, solidariedade, fraternidade e amizade. E antes de aprender no campo, eu fui ensinado pela família. E continuo. A cada reencontro, o dérbi nunca acaba. Só posso dizer: obrigado. Ps: já escrevi várias sobre tal tema. Mas amor a gente sempre reprisa.

(análise feita por Elias Aredes Junior)