O dia em que uma menina pontepretana derrotou o machismo no futebol

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– Menina, corre senão vai se atrasar!!!

O alarido inicia o dia para Melissa. Tem preguiça de levantar e ir à escola. Tem 12 anos. Morena, esguia, olhos castanhos, cabelo preso, divide os estudos com sua outra paixão: o futebol e a Ponte Preta. Não deixa de receber incentivos. Aos 45 anos, sua mãe Sara é frequentadora assídua do Majestoso ao lado de Samuel, o marido que conheceu nas arquibancadas. Relembra aos amigos sobre o dia do primeiro beijo, na rodada final do Brasileirão de 2003, contra o Fortaleza.

– Tem final feliz melhor do que este? Vou no jogo, o time vence, permanece na divisão de elite, conheço o homem da minha vida e  de quebra tenho dois filhos maravilhosos e que torcem para a Macaquinha- conta orgulhosa a mãe auxiliar de enfermagem e zelosa  com Matheus, o garoto de 11 anos, cujo sangue pontepretano explode nas veia.

Por percorrer os corredores e lidar com crianças e adolescentes em hospitais, Sara adquiriu tarimba para entender, compreender e captar os sentimentos destas figuras únicas.

Saiu intrigada do Majestoso. A família sentou junta na arquibancada e Melissa não esboçou delírio pelo gol de Jean Patrick e a vitória contra o Flamengo.

Viagem de ônibus feita e chegada na residência no Jardim São Vicente. Aos poucos Sara tenta detectar o que ocorre com a filha.

– Nossa, não dá um sentimento de alívio quando o time da gente ganha?- puxa conversa a mãe zelosa.

-É, pode ser..

– Tomara que seja assim até o final…

– Verdade, mãe- ratificou a adolescente em tom monossilábico.

O silêncio ficou impregnado. Nenhuma palavra ou gesto. Sara olhava para sua cria e não entendia o baixo astral. Em dado instante apelou:

– Filha, o que aconteceu? A Macaquinha ganha e você aí neste muxoxo? Mais: não combina com você. Vai, desembucha, o que rola?

Olho no olho. Melissa acumulava coragem para falar. Superar seus traumas. Típico comportamento de quem trilha o novo caminho da vida. A mente borbulha, pensa, reflete. Quando a boca começa a traduzir o seu turbilhão, a garota não parou:

– Mãe, por que os meninos da escola não me deixam jogar bola? O que eu fiz de errado? Não aguento mais. Eu só quero brincar. Matheus tenta convencer a turma e ninguém deixa. Tem torneio na escola semana que vem. Ninguém quer me deixar participar. O que foi que diz de errado?- questionou a menina, que em seguida caiu em um choro convulsivo. Ela não sabia, mas a discriminação queria marcar sua pele.

Sara não falou. O olhar terno, carinhoso e solidário era o que podia fornecer a filha querida, cuja tristeza despertou a solidariedade do irmão. Matheus entrou, dobrou os joelhos perto da cama e com o olhar fixo na direção da irmã, pegou em suas mãos. Queria mostrar que ela não estava sozinha. Que o seu desejo de brincar livremente, atrás de uma bola, também lhe pertencia.

– Mana, se existir uma única chance eu farei de tudo para você disputar esse torneio. Ok!? Você acredita em mim?- Pediu voto de confiança o garoto de cara redonda, olhos pequenos, lábios finos e um coração derretido pela família.

Os dias passam. Chega  o dia do torneio. São oito classes envolvidas. Para facilitar a identificação, a escola designou cada classe com um time paulista: Palmeiras, Corinthians, São Paulo, Santos, Bragantino, São Caetano, Mirassol e Ponte Preta.

A classe de Melissa ficou com a Macaquinha. A garota sentiu-se aliviada. Não podia jogar, mas poderia torcer de corpo e alma, sem pudores. Sabia que o torneio era uma exclusividade dos meninos, mas queria auxiliar de alguma forma.

A direção da escola tomou providências. A torneio seria no sistema de mata-mata. Pais, amigos e parentes poderiam assistir.

Agitação total. Jogos de 30 minutos e os garotos formavam times com sete jogadores. Os reservas era os integrantes restantes da classe.

A classe de Melissa, ou melhor, a Ponte Preta, passou pelo Corinthians, que eram alunos do oitavo ano e posteriormente classificou-se a final com um triunfo diante do Santos. Por sinal, a classe do seu irmão Matheus.

A final seria contra o Palmeiras, a outra classe de sexto ano. Minutos antes, o imprevisto: Douglas o melhor jogador da Ponte Preta fictícia não jogaria. Nos minutos finais do segundo jogo, o garoto de 12 anos, rápido e habilidoso, caiu sobre de mau jeito e machucou o braço. Foi encaminhado ao hospital.

Discussão iniciada: quem iria substitui-lo? Como a classe de 30 alunos tinha 22 meninas, não existiam saídas diversas. O professor Luiz Francisco estava prestes a promover a entrada de Lucas, o único garoto disponível para substituição. Com a bola no pé,  esforçado. Perder o melhor jogador e promover a entrada de um substituto de pior qualidade era o fim do sonho. Melissa ficou inconformada. Até na escola a sua Ponte Preta parecia sacaneada pelo destino. Não aguentou e em um gesto de ousadia aproximou-se da roda comandada pelo professor e desandou a falar:

– Professor, porque uma menina não pode entrar no lugar do Douglas? Somos 22 meninas e também temos direito de participar.

Perplexo e sem reação, o professor não esboçou  resposta. A revolta tomou conta dos garotos remanescentes. Ninguém estava conformado com a ousadia da garota em querer disputar um jogo entre os meninos. Não era hora de experiências.

– Quem você pensa que é? Fica na sua pô. Quer jogar futebol liga o Playstation ou joga bola contra a parede- disse em tom sarcástico o garoto Camilo, um interlocutor que Melissa já não engolira.

Com a risadaria geral, Melissa ficou acuada. Sem apoio, humilhada e desprezada na sua própria classe. Só queria jogar futebol, sentir a sensação que os adultos que ela idolatrava usufruíram aos domingos e quartas feiras. Quando o quadro parecia perdido, Matheus surgiu. Viu de longe o que acontecia com a irmã e ouviu tudo. Não titubeou:

– Professor, quem disse que mulher não pode jogar? Que discriminação é essa? Vocês não dizem que a escola prega a igualdade? Que lutamos contra o preconceito? Eu não tenho qualquer interferência no assunto,  mas o senhor parece querer perder uma chance de ouro. E quer saber? Não é porque é minha irmã, mas ela joga muito mais do que todos os outros garotos a sala…

Melissa queria preservar o irmão e assumir as rédeas. Nem teve tempo. O professor foi convencido.

– Peço desculpas Melissa. Seu irmão tem razão. Quer jogar? Então pega aquela camisa. É igualzinha aquela utilizada pelo Douglas. Boa sorte.

Melissa pensou em esclarecer uma situação quando quase caiu para trás ao ver que lhe sobrou a camisa 10. A 10 de Dicá.

Vem a final. Quadra lotada, cheia de crianças, professores e pais de alunos. Como em um embate com maioria de garotos, a correria era intensa, a bola quase não era vislumbrada. Melissa parecia perdida. Corria, buscava a bola de todas as maneiras e nada. Pior: em uma estratégia baixa, tantos os companheiros de equipe como os opositores lhe diziam absurdos. “Vai brincar de boneca”, “Perna de pau, não joga nada e ainda quer aparecer mais do que os outros”, eram as expressões mais leves. Olhos marejados, já pensava em desistir. O sonho virou pesadelo.

O futebol apronta das suas. Em uma disputa de bola nas imediações da área do Palmeiras, a bola respingou e sobrou no pé de Melissa. Fração de segundo disponível. Não havia tempo para pensar. Melissa chutou de peito de pé, de curva, no alto do gol. Gaveta. Golaço. 1 a 0. Foi tão inesperado que Melissa comemorou sozinha.

Nos minutos derradeiros, o Palmeiras fake da escola pressiona. O gol de empate parece eminente. No minuto final, um rebote sobra nos pés de Melissa. Em uma mistura de raiva e magia, a garota encarnou a habilidade e o talento de uma camisa 10. Arrancou em direção a área adversária; driblou três garotos, o goleiro e entrou com bola e tudo.

Uma obra de arte que provocou invasão em campo das outras companheiras de sala que lhe carregaram em triunfo. No torneio da escola, não tinha para ninguém: a Macaca era campeã.

Após a cerimônia de entrega das medalhas, Melissa, esfuziante e feliz foi em direção ao irmão. A curiosidade não cabia em si.

– Mano, você nunca me viu jogar antes. Nunca, nunca, nunca. Por que você foi lá me defender para o professor? Que garantia você tinha de que eu poderia fazer diferença?

– Porque quem ama o futebol e a nossa Ponte Preta jamais será derrotado.

O abraço emocionado de Mellisa no irmão Matheus e nos seus pais comprovava: a Ponte Preta jamais deixa ninguém sozinho.

(texto de ficção de autoria de Elias Aredes Junior)